cachorros azuis

 
 

Marcia Tiburi

 

 

Todos os cachorros são azuis de Rodrigo de Souza Leão (7Letras, 78 páginas) é um grande conto, dividido em quatro partes cujos títulos merecem menção: Tudo ficou Van Gogh; Deus não: deuses; Humphrey Bogart contra Charles Laughton; [Do gr. epílogos]. Confesso que comecei a ler (desta vez não pela capa), mas pelo título e pelos subtítulos. Pensei: se for ruim (ou seja, cansativo, só uma historinha, metido à besta, etc.) desisto logo com aquele tantinho de dor que sobra quando se tem uma frustração literária. Continuei porque era o contrário. O assunto perfeito: um rapaz de 38 anos vivendo em um hospício, rodeado de pessoas que não aparecem senão como fantasmagorias que mostram o quanto a vida dita normal também não empolga pela ordem (o pai, pediatra que vira psiquiatra para entender os filhos, os enfermeiros meio policiais, a mãe açucarada fazedora de bolos, a turma da injeção benzetacil…) e fazem a vida alucinada muito mais interessante. O protagonista divide sua mente com as alucinações Rimbaud e Baudelaire. Diante deles a tal “realidade” é que merece um desconto. Diante deles é que o protagonista pode lançar que “quero ser promovido à alucinação de alguém”. O protagonista, a propósito, é um sujeito que engoliu um chip, quebrou tudo dentro de casa, foi internado pelos pais que dez anos antes souberam que ele tinha engolido um grilo. Depois disso o que ele engole é o Haldol.

O estilo de Rodrigo Leão é uma grande qualidade de seu escrito. Para quem gosta de tratos sérios com a linguagem, será leitura das melhores. Quem espera, no entanto, só uma historinha contada, ou tem pouco senso de humor, não leia o livro, nem a última parte, a do “epilogos” em que o protagonista resolve nos contar sua aventura com uma “liga que agregava todos os seres do universo”. A liga tinha também a sua língua: TODOG. Sua vantagem era que ninguém a entendia, e, por isso, unia a todos que estivessem dispostos.

O fim da história, se ele saiu ou não da clínica, se viveu, se morreu, eu não conto, mas garanto que é tudo bem parecido com o mundo que todo mundo conhece. E, por isso, mesmo, assustador. 

 

 

 

Marcia Tiburi é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicou as antologias As Mulheres e a Filosofia (Unisinos, 2002),  O Corpo Torturado (Escritos, 2004),  Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero (Edunisc); os ensaios Uma outra história da razão (Unisinos, 2003), Diálogo sobre o Corpo (Escritos, 2004), Filosofia Cinza — a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (Escritos, 2004), Metamorfoses do Conceito (UFRGS, 2005); os romances Magnólia (2005) e a Mulher de Costas (2006), da série Trilogia Íntima (Bertrand Brasil). Em 2008, publicou Filosofia em Comum — para ler junto (Record). É professora do programa de pós-graduação em Arte, Educação e História da Cultura da Universidade Mackenzie, colunista da Revista Cult e participante do programa Saia Justa, do canal GNT. [ www.marciatiburi.com.br ]

volta <<<