nunca injete tudo

 

Heloisa Buarque de Hollanda

 

 

 

 

 

Tarefa estranha essa, de escrever este texto. Tenho diante de mim um jornalista diplomado, poeta, pintor, músico, blogueiro, mas, sobretudo, um poeta. Mas, de todos os lados, me vêm as mesmas sinalizações: trata-se de um esquizofrênico.

 

Indecisa, googlei “esquizofrenia + arte”. O exagero quantitativo de informações, sites, estudos, congressos et alii, resultantes dessa busca, comprova que o assunto não é apenas sério, é também atraente.

 

A discussão vem de longe, vem de Platão quando considerou a exaltação da alma um presente dos deuses para artistas e poetas, passa pela avaliação da grandeza da loucura por Fedro, e no final do século XIX já está completamente sistematizada a relação entre arte e loucura. Já, mais especificamente, quanto à esquizofrenia, aprendo que Bleuler, em 10911, fixa o termo dando unidade a um grupo de psicoses. A partir daí a conversa se desenvolve em proporção geométrica. Fico só com os mestres. Freud fala em afastamento da realidade e a predominância de uma vida interior entregue à atividades delirantes mal sistematizadas. Lacan diagnostica uma forclusão do nome do Pai, Dra Nise da Silveira, essa sim uma poeta, prefere capitalizar terapeuticamente o dizer de Artaud “o ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos” e percebe que os médicos não têm vocabulário para dialogar com os esquizofrênicos a não ser através da arte.

 

Generalizando, Fredric Jameson renomado teórico da cultura do final do século XX, toma a esquizofrenia como modelo estético para compreender as rupturas da cadeia expressiva de significantes da arte pós-moderna (1996).

 

Por todos os lados, Van Gogh emerge, poderoso, sinalizando a possibilidade da grandeza da arte borderline.

 

E é por aqui que começo.

 

Rodrigo não escapou de todo do ethos Van Gogh.

Num texto belíssimo, Van Gogh é onipresente:

 

Tudo ficou dourado. O céu dourado. O Cristo dourado.

A ambulância dourada. As enfermeiras douradas tocando-me com suas mãos douradas.

Tudo ficou azul: o bem-te-vi azul, a rosa azul, a caneta bic azul, os trogloditas dos enfermeiros.

Tudo ficou amarelo. Foi quando vi Rimbaud tentando se enforcar com a gravata de Maiakovski e não deixei.

 

Por sua vez, em Me roubaram uns dias contados, seu último livro, ficcionaliza uma entrevista sobre uma exposição de obras suas realizada num interregno de uma de suas internações:

 

Minha exposição foi um sucesso. Passei a ser conhecido como o Van Gogh brasileiro. Um repórter veio a minha casa para me entrevistar para o caderno cultural mais famoso do Brasil. Como é ser considerado o Van Gogh brasileiro?

 

Estão dadas as regras do jogo de espelho com a loucura  que deixa e não deixa que olhemos para o trabalho de Rodrigo a partir da ótica da esquizofrenia.

 

Seus textos recorrem, com gosto e apuro, sobre o que seria ser um esquizofrênico, diagnóstico que recebeu, de rompante, aos 23 anos. Daí em diante, estabelece uma longa conversa cheia de idas e vindas, delírios e métricas, sobre essa condição, especialmente no livro O esquizóide: coração na boca: "Eu sou esquizofrênico. Tento em vão começar esta história. Apago, deleto, digito palavras a mais".

 

Conheci Rodrigo em 2002, como um jovem e produtivo jornalista do site literário Balacobaco que mantinha na época, já naquela altura com um acervo de mais de 150 entrevistas com poetas e escritores. Foi assim, que ele chegou à minha casa e conversamos sobre o lançamento de uma de minhas antologias. Me irritou sua insistência em induzir minha fala. Parecia atento, matreiro, procurando uma brecha. As perguntas, às vezes, traziam uma certa coloração marron. Me defendi. Não gostei dele.

 

Só bastante tempo depois me encontrei com o Rodrigo autor, um poeta prolífico, de várias dicções e certamente dono de seu ofício.

Me entusiasmei.

 

Volts em volta

Eletrodos todos

 

De branco culpados

culpas pecados

 

Haldol no leite

Ralo do tempo

 

Poesia, sonoridade, pintura, prosa, precisão, palavra rimada?

 

Sua produção é volumosa. Compulsiva. Foi um pioneiro no uso da literatura na internet, tem vários e-books de prosa e de poesia publicados, o CD Krâneos e neurônios, e uma coleção de mais de 50 telas pintadas durante os três meses em que passou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage.

 

Há uma inesperada unidade na poesia expandida de Rodrigo. Uma poesia que não parece caber apenas na palavra e vai se esgarçando por outras plataformas, lógicas, inflexões. Sobretudo em imagens. No caso Rodrigo o que mais atrai e encanta é o deslizar, o surfar entre linguagens, entre palavras e imagens, sem nada que interrompa a fala de uma pela fala da outra. Como ele diz no poema Delirium, seria apenas como um “voar em outro aroma”.

 

Sua telas não racionalizam a esquizofrenia, como faz em muitos de seus poemas, mas concentram-se em rostos, rostos, rostos. E esses rostos são fortes, transfiguram-se em máscaras, sudários que se recolhem em dobraduras, alteridades, levezas. Nesse caso, a tela a Insustentável leveza do elefante é imbatível.

 

Um último feito, para mim — um real tour de force é a criação do livro Dias de Leão. Rodrigo já havia declarado que poesia para ele era João Cabral. E agora, não por acaso, se apossa (literalmente), sem pedir permissão, da obra de Antonio Dias. João Cabral e Antonio Dias, dois artistas apolíneos, são os eleitos por Rodrigo para um grande diálogo (ou confronto?) conduzido bela beleza de sua palavra desmembrada, rasgada, rouca. Uma luta com Deuses. Bela.

 

Em certo ponto de sua poesia, mais especificamente num verso do poema Surto, Rodrigo de Souza Leão nos dá um metro de leitura para sua poesia. Diz o poeta: “Nunca injete tudo”. É sério.

 

 

Heloisa Buarque de Hollanda é coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea/UFRJ e diretora da Aeroplano Editora e Consultoria.

 

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