a pintura de rodrigo de

souza leão — um depoimento

 

 

Paulo Sergio Duarte

 

 

 

 

Uma vez por semana, depois do jantar, Sandra atendia ao telefone e me passava: “É seu primo”. Conversávamos uma meia hora, sempre sobre literatura, arte e como ele estava se sentindo. Jamais outro assunto. Seu gosto era refinado e sem concessões, a começar consigo mesmo. Reclamava desse ou daquele poema que considerava mal-resolvido e me enviava endereços na internet para que pudesse acessá-los. Recebia inúmeras dicas sobre novos escritores, sobretudo poetas, que podia encontrar na rede. Pelas indicações de Rodrigo, descobria todo um mundo novo, diferente daquele da minha geração. Toda uma literatura que jamais existira sobre papel e de qualidade muito variável.

 

Há mais de dez anos, numa dessas conversas, me pergunta sobre o que estava fazendo. Tinha acabado de revisar um livro sobre patrimônio cultural que havia escrito para capacitação de professores do ensino básico e médio e lhe enviei. Dias depois recebo o telefonema e um elogio. Partindo do Rodrigo, fiquei feliz. Sabia que não derramava elogios à toa. O que sempre me assustou nas nossas conversas, e que contrariava todos os preconceitos que o senso comum alimenta contra as vítimas de distúrbios mentais, era sua extrema lucidez. Uma lucidez que chegava a queimar.

 

Quando há uns quatro anos me falou que estava interessado em pintar, que iria comprar tintas, telas e pincéis, imediatamente lhe disse que não era bem assim, que havia um lugar no qual poderia aprender e que possibilitava a convivência com outros artistas: a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Na verdade, não esperava que o poeta e o escritor se transformassem num pintor. Era mais um argumento para retirá-lo de casa, onde se escondia sem sair há cerca de vinte anos, tendo sua sociabilidade se estendido naqueles anos, principalmente, pela grande rede. Não é que Rodrigo aceitou minha sugestão? Na companhia de seu irmão Bruno, passou a frequentar o curso de João Magalhães no Parque Lage.

 

Vi as primeiras telas no lançamento de um de seus livros, realizado no condomínio em que morava com sua família na Rua Prof. Gastão Bahiana, entre Copacabana e a Lagoa Rodrigo de Freitas. Todas, naquele dia, eram de pequeno formato, muitas máscaras de um expressionismo enfezado. Era um começo que jamais imaginei que chegaria ao ponto dessa exposição que ora se realiza graças à dedicação de Ramon Mello e Marta Mestre, à abertura esclarecida de Luiz Camillo Osorio como curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de Max Perlingeiro da Pinakotheke.

 

Por favor, não me venham com interpretações psicanalíticas ou psiquiátricas a respeito dessas pinturas. Como toda e qualquer pintura, estas estão sujeitas a essas interpretações. Tentem olhá-las como pinturas, simplesmente pinturas. Trata-se, sem dúvida, de trabalhos de alguém que precisava ainda “rolar muita ribanceira” em busca de um apuro maior da técnica, mas em quem pesa o caminho que não teve tempo de percorrer. Suas telas são superiores, sob todos os pontos de vista, a muitas coisas que circulam por aí no mercado de arte contemporânea. Em primeiro lugar: não há macetes, truques muito usados por artistas medíocres para afirmar um estilo e personalizar sua linguagem. Esses macetes fazem muito sucesso no mercado.

 

As telas de maiores dimensões se estruturam por uma grade muito livre como narrativas puramente visuais. Algumas imagens são recorrentes, como o tema da cruz e do crucificado. Uma referência literária chama a atenção: Retrato de Gregor Samsa, na memória do personagem de Kafka, condenado a ser execrado porque um dia acorda transformado em um grande inseto. Nas suas duas versões, o corpo de Gregor Samsa é formado por uma cruz de múltiplos braços; na versão de maior dimensão a pintura está melhor organizada, uma trama de losangos coloridos se estende dos dois lados do corpo e grandes superfícies cinzas avançam além dos limites da tela como asas. Pontos de tinta vermelha escorrem sobre a figura. A dolorosa experiência da “Metamorfose” é retratada.

 

Observando essas telas, temos a impressão de que estamos diante de um pintor da chamada Geração 80, e Ramon Mello me confirma que, tal como na sua obra literária, as referências básicas de Rodrigo se encontram nessa década.

 

É claro que meu juízo crítico está contaminado pelo carinho e pela afeição, mas não pude recusar o convite para dar este testemunho. Rodrigo, além de poeta, escritor de ficção e artista, foi um grande lutador, usando como armas sua inteligência e sua sensibilidade. Para isso contou, sobretudo, com o apoio de seus pais, Maria Sílvia e Antonio Alberto, e de seus irmãos, Maria Dulce e Bruno. Sua obra será revisitada, com certeza, depois dessa exposição, com outros olhos, acrescida agora de uma poderosa visão plástica do mundo e de sua experiência.

 

Rio de Janeiro, outubro de 2011.

 

 

Paulo Sergio Duarte, crítico de arte, é primo e padrinho de batismo de Rodrigo de Souza Leão.

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