grito espontâneo

 

 

 

José Aloise Bahia

 

 

 

 

Latejando na memória, Michel Thevoz, em 1990, observa de maneira contundente “Que um artista tenha sido internado ou não, tem certamente importância no que concerne à sua obra, porém, não mais ou menos que qualquer outra determinação biográfica”. Em contraste, o diagnóstico das telas de Rodrigo de Souza Leão representa o desdobramento das palavras, contornos da expressão humana face à exaustão do grito espontâneo e aos delírios da realidade diante de si numa experiência vivida, sentida e acidentada. Visão da fúria e da desilusão contagiadas na presença das cores. Lugar de resistência, cólera, na condição humana derretida entre labirintos e hermetismos. Desenrolar das amarras pela euforia e pela saturação de remédios cromatizados, alargando o campo da experimentação com tintas básicas em apelos figurativos contorcidos por pinceladas retas em toda brutalidade prévia: recorrências para a mente dividida na sua incompletude, insubordinada individualidade e alternativas em trânsitos permanentes à procura da originalidade.

 

Numa extensão e desenvolvimento do ato criativo à procura da originalidade expositiva, fascinado por Baudelaire, Van Gogh e Basquiat, naquilo que só a imaginação faz perceber o que pode ser, a reverberação da literatura rompe a janela da alma aprisionada entre quatro paredes numa relação voluntária ao procurar a liberdade estética e articular elementos artísticos como forças desinibidoras entre os escombros da razão instrumentalizada, porém sempre esbarrando em algo para ser livre, transitando do aparentemente conhecido para o desconhecido. Revelando cumplicidade ao extremo com a falta, busca desenfreada de correlações, num espaço cada vez menos delicado. Pulando fronteiras, restaurando o deslimite do silêncio na necessidade colorida da Arte Marginal e correlações recorrentes que remetem ao Grupo CoBrA, de Karel Appel e Corneille van Beverloo, das décadas de 1940/50, como na pintura A morte do Saci: TNT e gerúndios escavados à medida que avançam na moldura. Artefato sensível a qualquer movimentação contaminada, prima em primeiro grau da nitroglicerina. Dinamite pura. De coloração vermelha amarelada, quando explodida respinga nuvens inflamadas despontando transparências nas quais alguns erros são acertos.

 

A trajetória do homem-pintor se desenvolve a partir de diálogos da poesia e da vida, identidade e ficção, muito além do controle de rastros e ruídos invisíveis. Pois a imagem torna-se testemunha visceral na crença intercambiável da visualidade e de contatos fora da clausura, resultante de um rumo que quer se fazer notar, “aliada ao cuidado de se deixar distinguir”, invocando Paul Valéry. Situada no presente verdejante do Parque Laje, a coexistência de dois mundos indissociáveis, interno e externo, na obsessão íntima das coisas mundanas, germina o impulso necessário para evocar um outro tipo de  grito mudo e essencial em O Punk,  com o coração na boca, transfigurando o rosto crucificado pelo brilho escurecido do olhar ao remeter o semblante a uma suposta criatura e espantalho em tons vibrantes, pinceladas fortes, dinâmicas, densas, desoladas, vorazes, acentuando o domínio dos aspectos emocionais sobre os racionais, expressando uma atmosfera trágica e sentimentos dramáticos.  

 

Diante da biografia, literatura e dissoluções formais dos motivos artísticos apresentados a partir do sofrimento pessoal e intransferível, intranquilo, o espectador poderá perguntar: como a dor é fascinante? Pois ela revela-se com toda magia e fidelidade o impossível, o frágil, a indefinição e a falta, compostos que suspiram na subjetividade latente, impregnada de compulsão intuitiva na articulação de vozes, deixando amadurecer as implicações numa conceituação moderna da arte, nas palavras de Charles Baudelaire: “A modernidade é o transitório, o fugaz, o contingente, a metade da arte, cuja metade restante é eterna e imutável”. Rumo ao salto construtivo de qualquer tipo de metamorfose, a complexidade da dor prossegue na luta contemplativa e na vontade dos olhos que recobrem os reflexos das emoções e o seu comportamento no desenrolar futuro, algum tipo de reconquista por parte do observador. Busca-se no exame da falta a presença, o lugar da palavra-imagem e a sensibilidade, fecundar a inclinação para suplementar esse eterno e imutável desejo transcendente da arte. O movimento, às vezes esquecido, que faz o inacabado mostrar o vigor numa postura delicada recoberta por camadas superpostas de estímulos perseguido pelo homem-pintor e sensos na construção de uma linguagem no processo contínuo do ver e imaginar, vertigem que fica na borda saliente entre quem quer conhecer e o que pode acontecer com o conhecido no terreno do desconhecido.

 

A consequência é a procura de uma nova abordagem. A comoção rompante em (des)acordo com a condição submetida ao longo da vida. Fascinado pela catástrofe de um universo caduco e asfixiante, reparando as incertezas na extensão nada aprazível do desconhecido e em contínuo processo de procura transparente na recusa enquadrada de um sistema de modas, notas e opiniões que se confundem. A pintura quer ser lida, e a poesia, imagem. Opera-se no campo da investigação do homem-pintor desdobramento e fusão para a representação de um tipo de rearranjo que ao mesmo tempo incorpora e vai além das palavras. A percepção alarga-se de acordo com a necessidade da expressão. Mesmo tendo leituras e conhecimento de normas instauradas, na rebeldia arrisca o próprio ser como conceito e imagem; aproxima-se da (des)compostura pétrea de Jean Dubuffet, “Guardo grande estima aos valores da selvageria: instinto, paixão, capricho, violência, delírio”. Mas o paroxismo, o arrebatamento e a manutenção da tensão suplantam a aparente resistência pelo aceno, instinto, procura, desinibição e coragem, como, por exemplo, no quadro Singelo, uma irreverência maculada na qual toda a voracidade do vaso em forma de boca de tubarão dá vida à nada suave margarida de oito pétalas escuras envoltas no vermelho vibrante, amparada pela cor do tempo, o amarelo, formando contrapontos simbólicos adicionais na composição. Evidências de uma natureza-morta marcadamente alegórica no supremo desejo de conexão com o desconhecido que acentua todo o conjunto crônico de esperanças, sem a presença do verde. O vermelho que envolve a flor é a atmosfera, estímulo e sinalização violenta da expectativa, a consolação de uma dúvida-afirmativa numa outra dimensão, maior e misteriosa, da existência.

 

Para clarear a absorção do temperamento, estamos diante do testemunho da autenticidade disforme, sua linguagem de múltiplos significados que devasta e desafia o convencional, perpetuando-se através de cortes coloridos, vácuos brancos em grande parte das telas e deslocamentos de temáticas prontas para eclodir. “É uma criação impulsiva, muitas vezes circunscrita ao tempo, ao esporádico, que não obedece a nenhuma demanda, que resiste a toda solicitação de comunicação, que talvez encontre mesmo sua força opondo-se aos outros”, assim resume Michel Thevoz os aspectos fundamentais da Arte Bruta, na qual podemos averiguar os possíveis diálogos mais duradouros na postura estética adotada pelo homem-pintor.

   

Rodrigo de Souza Leão, em comum com Antonin Artaud, Arthur Rimbaud, Augusto dos Anjos, Francis Bacon, Federico García Lorca, Glauber Rocha, Janis Joplin, Jean Genet, Joseph Beuys, Leonilson, Lima Barreto, Nam June Paik, Oscar Wilde, Pier Paolo Pasolini, Roberto Piva, dentre outros arquitetos, cineastas, escritores, escultores, dramaturgos, músicos, pintores, poetas, etc. tem a arte que perturba, provoca e escandaliza. “Uma arte que nasce da pura invenção e que jamais se baseia, como faz a arte cultural com frequência, em processos que evocam o camaleão ou o papagaio”, na observação acurada de Jean Dubuffet. Desafiando a sanidade, mergulhada no dilema dilacerante da síntese impossível e da busca da verdade diante da perplexidade inconformista no percurso movediço de um desgarrado, tão bem descrito por Artaud no texto de 1947 Van Gogh, o homem suicidado pela sociedade: “Ninguém jamais escreveu, pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou, a não ser literalmente para sair do inferno”.

 

Desejar resistir é poder criar. Aqueles que o conheceram, seja no mundo real ou virtual, são unânimes com a sua presença, um espírito fragmentado, generoso e lúcido. Demasiadamente artístico, curioso, questionador, espontâneo no gesto a trilhar um caminho imagético sem volta em suas teias e ramificações. Semelhante a Ezra Pound, retratado por Peter Ackroyd, em estado bruto de provocação diante do caos e à procura de formas e estruturas, subversivo e polífago ao sorver e exaurir até a última gota da seiva, incluindo toda uma gama de emoções conturbadas que nunca aprendeu a compreender ou a controlar adequadamente. Enfático e pleno na primeira pessoa, um eu incontido, a perseguir uma fenda ou vaso comunicante, em meio ao contraste da secura terrena e de nuvens carregadas. Dédalo estampado numa corrida sem tréguas e freios até não ficar claro onde as cores, traços e representações em suas telas terminam e o homem recomeça.

 

Tudo vai ficar da cor que você quiser é um inventário privilegiado pelo seu caráter humanístico. Um convite para caminhar pelas trilhas do homem-pintor e por sua saga de imagens transgressivas, sedentas e grávidas. Iluminações para uma criação destemida e intrigante. Dedicado de corpo e alma à literatura após o seu recolhimento e à pintura nos últimos anos de vida, o escritor-artista inscreve a impaciência que obceca, sem nunca renunciar à vereda da descoberta: vital no estranhamento, emocional na procura pelo esclarecimento e imortal pela tentativa.

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).

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