todos os cachorros são azuis
Pablo Capistrano
[www.says-it.com/cutting]
LIVRO: TODOS
OS CACHORROS SÃO AZUIS
AUTOR:
Rodrigo de Souza Leão
EDITORA: 7
Letras
ANO:
2008
Dizem
(acho que foi Nietzsche quem escreveu isso) que a arte existe para que a
verdade não nos destrua. E de todas as verdades, algumas são muito
dolorosas para serem suportadas. Há verdade da morte, a verdade da
injustiça fundamental da natureza, a verdade do tempo, a verdade da
doença.
Quando
a doença afeta a mente, essa verdade parece que se torna mais terrível,
porque o doente acaba se misturando com a própria doença que o atormenta.
Não sei se você já notou isso, amigo velho, mas há uma dimensão
ontológica desconcertante na doença mental. Uma dimensão que afeta as
próprias fronteiras do Eu.
A
estabilidade do mundo, talvez seja a consequência mais palpável da
arquitetura de nossa linguagem, que cria um padrão estável em forma de
rede onde o cotidiano das coisas pode ser enquadrado para que nós, humanos
ditos normais, possamos construir nossas aventuras.
Talvez
por isso, a leitura do livro Todos os Cachorros são
Azuis, de Rodrigo de Souza Leão seja tão desconcertante.
Não se trata de um simples relato de um paciente psiquiátrico,
diagnosticado com esquizofrenia. A doença não é a única culpada pelo livro
de Rodrigo. Ela pode até ser uma desculpa necessária para encaixar seu
texto em um diagnóstico que escape ao da crítica literária, mas não é
suficiente para dar conta da estranha sensação que nós, leitores
acostumados a linearidade da prosa dos “normais”, temos ao sermos tragados
por uma narrativa que não obedece a um padrão de causa e efeito. Uma
narrativa que não funciona no mesmo e neurótico tempo que formata a nossa
experiência de mundo.
Outros
autores no século XX já experimentaram a fragmentação da linguagem, desde
André Betron com sua escrita automática surrealista até os Cut Ups de
William Burroughs, ou mesmo o fluxo semiótico de Joyce em Finnegans Wake e
Paulo Leminski em O Catatau.
Mas, em todos esses autores, a loucura da linguagem funciona a partir de
um substrato ontológico que ainda vincula o verbo dos caras ao tempo do
mundo. Existe um mundo antes da linguagem desses autores. Ele está lá para
ser destruído por alguma técnica poética particular.
Rodrigo,
por sua vez, não precisa de técnicas para saltar fora da Matrix. Ele já
ultrapassou a fronteira, já está do outro lado da rede e o seu mundo, que
nos é apresentado em frases marteladas, curtas, sobrepostas;
surpreendentemente não nos sufoca em um buraco sintático qualquer. O texto
de Rodrigo nos arrasta em seu fluxo descompassado, como se, de repente
fossemos pegos despreparados diante de um paradoxo. A verdade da
doença que esfarela a linguagem e decompõe as fronteiras entre o que é do
Outro e o que é do Eu, não consegue destruir a deliciosa sensação de
estarmos diante de uma obra de literatura.
O
que não tem causa nem efeito, o que anda fora do tempo, o que interrompe a
sequencia usual de nossas realidades, não nos aborrece, não nos enfada,
não nos massacra com a verdade terrível de seus
assombros.
O
verbo de Rodrigo, a despeito do seu diagnóstico, da sua classificação
psiquiátrica, do seu tormento particular, nos faz lembrar que existe um
mistério na linguagem. Um segredo particular que deve ter, em cifras e
signos submersos, sido repassado pelas gerações de poetas, em suas
conversas com os mortos. Um maravilhoso desconcerto da linguagem, que nos
fisga, a despeito da força destrutiva das verdades do mundo. Que
piedosamente nos liberta de nossas verdades, para que a literatura faça
seu serviço.
9
de janeiro de 2012.
Pablo Capistrano (Natal, RN). Escritor, formou-se em Filosofia e em Direito. Tem mestrado em Metafísica pela UFRN e é doutorando do Programa de Pós-graduação em estudos da linguagem do CCHLA da UFRN. Professor de Filosofia do IFRN Campus de Santa Cruz. Publicou Domingos no Mundo (poesia, 1998); Descoordenadas cartesianas (ensaios de filosofia, Sebo Vermelho Edições/Coleção João Nicodemos de Lima, 2001); Pequenas Catástrofes (romance, 1ª edição, A. S. Editores: 2003; 2ª edição, Rocco: 2005), primeiro lugar no concurso Câmara Cascudo. Mais em www.pablocapistrano.com.br.
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