lucidez póstuma do poeta

Ronaldo Bressane

 

 

A Insustentável Leveza do Elefante, RSL

 

[Perfil de Rodrigo de Souza Leão para o caderno Ilustríssima, Folha de S.Paulo de 6/11/11. A exposição Tudo vai ficar da cor que você quiser, com suas pinturas e também textos em prosa e poesia, fica entre  9/11/11 e 15/1/12 no MAM/Rio.]

 

Sossega, Leão

 

Louco lúcido, prosador auto-irônico, pintor inconsciente, poeta (talvez) suicida

 

“TUDO É PEQUENO/ A fama/ A lama/ O lince hipnotizando a iguana/ O que é grande/ É a arte/ Há vida em Marte.” Estranho poema este, o último postado por Rodrigo de Souza Leão em seu blog Lowcura. Cinco dias depois morria o jornalista, músico, poeta, prosador e pintor, em circunstâncias nebulosas, numa clínica psiquiátrica do Rio de Janeiro. O poema parece uma despedida, e, além deste texto, RSL deixou uma “carta final” à família. Mas teria morrido de causas naturais, o que afastaria uma possível hipótese de suicídio. A morte é um dos mistérios que cercam a vida deste carioca nascido em 1965: um ponto final que, paradoxalmente, colocou em circulação sua obra, hoje objeto de culto.

 

A peça Todos os cachorros são azuis, adaptação de Ramon Mello para o teatro do romance homônimo (7Letras, finalista do Prêmio Portugal Telecom), estreou em julho e foi aplaudida até por críticos carrancudos como Barbara Heliodora. Este e os romances O esquizoide — Coração na boca (Record) e Me roubaram uns dias contados (Record), todos editados somente após sua morte, serão vertidos ao cinema por Felipe Bragança, com o ator Cauã Reymond no papel de RSL. Por fim, uma exposição com suas pinturas será aberta em novembro no MAM: o custo da mostra Tudo vai ficar da cor que você quiser (R$ 30 mil) foi viabilizado com as doações coletivas de um site de crowdfunding — no catálogo, Mello, curador da obra de RSL, conta que as doações até ultrapassaram o orçamento da exposição, R$ 30 mil.

 

Tudo começa com um grilo na cuca; ou, talvez, com um chip no cérebro.

 

GRILO

 

Um dia ele surtou e saiu correndo pelas ruas de Botafogo. Dizia que havia sido atingido por um dardo disparado por um japonês, que introduzira um chip no seu cérebro. Nesse mesmo dia foi internado em uma clínica psiquiátrica, onde ficou por três semanas“, conta seu pai, o médico Antonio de Souza Leão. Já aos 17 anos RSL havia sido diagnosticado com esquizofrenia paranoide, agravada por transtorno obsessivo compulsivo. Tratando-se com neurolépticos, conseguiu se formar em jornalismo e arranjar emprego como auxiliar de escritório na Sasse (seguradora da Caixa Econômica); a chatíssima ocupação foi decalcada no livro de estreia, Carbono pautado: Memórias de um auxiliar de escritório (Virtualbooks — a Record pretende relançá-lo em 2012).

 

Não era a primeira arte de RSL: ele tinha sido vocalista da banda Pátria Armada, confessadamente inspirada na Legião Urbana. “Renato Russo foi seu maior ídolo”, diz o pai. Torcedor do Flamengo, clube onde praticava triatlo, RSL era vaidoso, mantinha a forma dando voltas na lagoa Rodrigo de Freitas, vestia-se quase sempre de preto, tinha o apelido de Elvis e muitos amigos e namoradas na Faculdade da Cidade. Esta vida “normal” foi irremediavelmente perdida naquela tarde em Botafogo: dos 23 anos em diante, nunca mais saiu à rua sozinho.

 

Atrás de mim, um japonês tirou uma zarabatana pequenina para fora, soprou e inoculou em mim a bomba“, escreve RSL em O esquizoide. Antes da bomba implantada, porém, houve um chip; e, antes do chip, um grilo. “Tudo começou quando engoli um grilo em São João da Barra. Tinha 15 anos de idade. Estava indo ou voltando. Só parava pra voar“, anota em Todos os cachorros são azuis, misto de registro da experiência na clínica com romance policial nonsense.

 

Depreende-se desses trechos que o escritor usava com perspicácia as próprias alucinações, vertendo-as em corpo narrativo. Operação triangulada em mise en abyme: o narrador RSL registra o autor RSL surtado que continuamente arma situações a serem criticadas pelo personagem RSL. Se toda ficção é reinvenção da biografia, como a prosa pode ser verossímil quando a própria biografia é controversa?

 

LABIRINTO

 

A saída deste narrador nada confiável é a galhofa tinta com melancolia. Seu romance mais ambicioso, Me roubaram uns dias contados, é um labirinto de espelhos, um parque de diversões frequentado apenas por RSL e o leitor. Inicia com uma engraçadíssima seção focada em um sujeito chamado Weimar, que jamais sai do apartamento, onde tem dez telefones — os “gozofones” —, usados para sexo à distância. Weimar atrai a seu covil onanista as garotas Vegetal, Mental e Vertigem. Interrompe a suruba para ler um livro de 600 páginas — ficção envolvendo Nietzsche, Alan Kardec e Daniel Boone —, e tem início a segunda seção, em que o narrador detalha, na terceira pessoa, a rotina repetitiva de um certo Rodrigo e da mulher por quem ele está apaixonado.

 

O hipnótico texto tem toques de paradoxal poesia — “Ninguém se conhece tanto a ponto de abrir a porta para um estranho sem saber que este estranho é ele mesmo” — e presságios tragicômicos: “Alguma coisa acontece no meu coração. Será um infarto do miocárdio?“.

 

Divertindo-se com o fato de que o tal Rodrigo não consegue ser publicado por nenhuma editora — os editores desconfiam de seu transtorno mental; ele seria “um louco lúcido demais” —, o texto vai da sarcástica autopiedade ao auto-ódio profundo sem cessar, sempre em frases curtas, secas, sem verbo, num discurso em que a livre associação de ideias monomaníacas deixa entrever um rico panorama do Brasil dos anos 80 e 90, habitado por contínuas colagens de versos de Legião Urbana, Titãs e Cazuza, bem como de Drummond, João Cabral, Proust, Rimbaud, Kafka, Beckett e Baudelaire.

 

Na seção seguinte, um homem é perseguido por seu sósia — o Sósia, claro. Depois o Sósia se torna pintor celebrado, o “Van Gogh brasileiro” — exatamente o contrário de RSL, que, na época da escrita do romance, iniciava um curso de pintura no Parque Lage. À parte o tortuoso argumento, transtornos mentais, remédios e reclusão ocupam o centro da escrita: todos os personagens são Rodrigo de Souza Leão — e todos não.

 

LOUCURA X LITERATURA

 

Vivendo a doença mental como plano de fuga e ao mesmo tempo realidade multidimensional, RSL se inscreveu em uma esquiva linhagem da nossa literatura. O cânone desta escrita de autobiográfica investigação psicopatológica alinha do Lima Barreto de O cemitério dos vivos ao Lourenço Mutarelli de A arte de produzir efeito sem causa, passando pelo José Agrippino de Paula de Lugar público, o Renato Pompeu de Quatro-olhos, o Carlos Süssekind de Armadilha para Lamartine, a Orides Fontela de Teia e a Maura Lopes Cançado de Hospício é Deus.

 

Acho que não temos muito como fugir desta ‘tradição’ de tratar os transtornos mentais na escrita, porque a poesia dele dialoga frontalmente com isso“, confirma a ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda. “Esse leve deslocamento para um ponto de vista de onde pode olhar a doença é um traço marcante de RSL, que traz uma levada muito pessoal com sua dicção poética. Por outro lado, ele combina esse universo intenso à leveza da geração 00, que também vive a imersão na internet, o que traz definitivamente um diferencial para seu texto“, conclui.

 

Para este artista ermitão, a rede foi raro canal de comunicação com o mundo. Além dos romances, RSL publicou em vida os livros de poesia Há flores na pele (Trema, 2001) e Caga-regras (Virtualbooks, 2009), fora dez e-books, além de dezenas de textos na internet. Através do Balacobaco, e-zine que começou ainda nos anos 90, do Germina, site que editou com a poeta Silvana Guimarães, e do site Zunái, editado com o poeta e tradutor Claudio Daniel, RSL entrevistou cerca de 150 escritores brasileiros — feito jornalístico raro até para quem só vive disso.

 

Daniel refuta a doença mental como endereço a situar RSL como “poeta maldito“. “Ele era gentil, sincero e generoso, tinha muito humor“, lembra. “Abordava temas incômodos, como esquizofrenia e internação hospitalar, incluía em seus versos a gíria, a linguagem urbana, o palavrão; mas o rótulo ‘poeta maldito’ é ficção publicitária. Ele está incluído, sim, entre os melhores poetas brasileiros surgidos a partir do fim do século 20, por sua originalidade temática e vocabular“, defende.

 

NÃO-LINEAR

 

A ficção e a lírica de RSL são pontilhistas, jamais lineares — como os lampejos sem pé nem cabeça de um xamã urbano“, analisa o escritor e crítico Nelson de Oliveira. “Como em Maura Lopes Cançado, na escrita de RSL a esquizofrenia não é recurso retórico: é real. O escritor, o narrador e o eu-poético, terminado o trabalho literário, não tiram a máscara da loucura, tomam um banho, ligam a tevê e voltam ao ‘normal’: a máscara da loucura é seu verdadeiro rosto“, diz.

 

A não-linearidade de RSL foi justamente o que atraiu o ator Cauã Reymond, que comprou os direitos de todos os livros; pretende filmá-los em 2013. “Os vários personagens que Rodrigo criou permitem uma narrativa cinematográfica muito criativa. É genial a maneira como ele faz os dois planos interagirem, o real e aquele que percebe pelo filtro da esquizofrenia. E o Rodrigo era um esquizofrênico consciente da condição, o que torna a história mais fascinante. A prosa aparentemente caótica é orgânica, te transporta direto para dentro daquele universo que, em seu caos, é muito coerente“, entusiasma-se o ator.

 

PINTURA

 

Nos últimos anos, a arte de RSL vazou para a expressão pictórica. “Meu objetivo ao convidá-lo para um curso no Parque Lage foi interromper a síndrome de pânico que fazia com que Rodrigo não saísse de casa há vinte anos“, lembra o crítico e professor de arte Paulo Sérgio Duarte, tio de RSL, que se surpreendeu com suas obras iniciais. “Se, observando a obra literária, você encontra referências típicas dos anos 1980, as pinturas que o Rodrigo realizou pertencem claramente à chamada Geração 80“, afirma. “Ainda que iniciante, sua pintura tem bastante interesse“, releva seu professor, João Magalhães: “Ele apresenta uma narrativa repleta de uma simbologia muito pessoal mesclando drama e humor, como seu texto“, diz.

 

O incipiente trabalho visual foi descontinuado por novo surto, ocasionado, curiosamente, por uma novela da Rede Globo. RSL ficou muito impressionado com Tarso, personagem de Bruno Gagliasso na novela Caminho das Índias: um esquizofrênico que dera um tiro no irmão da namorada. “Ele achava que fazer Tarso cometer um crime era um estímulo perigoso a outros enfermos“, revela o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, que costumava travar longas conversas com RSL por telefone. O escritor se revoltou com o que achava uma abordagem estereotipada da esquizofrenia e publicou no Jornal do Brasil uma dura carta à novelista Glória Perez.

 

FOGO

 

Rodrigo acalentou um medo de matar o irmão, Bruno, e foi irredutível em querer se internar“, recorda o pai. “No dia 28 de junho, foi voluntariamente à clínica. Visitei-o no domingo levando o JB com sua carta, mas ele mal conversou comigo, parecia ausente; depois soube que agredira um enfermeiro — estranhei, pois Rodrigo nunca fora agressivo”. Antes de ser internado, RSL deixou uma carta de despedida, mas sua morte, a 2 de julho de 2009, permanece insolúvel.

 

Como não havia sinais de violência, a família optou por não fazer autópsia. “Ele fumava três maços de cigarro por dia, era hipertenso, fatores que podem ter contribuido para o infarto do miocárdio… bem como, talvez, uma dosagem maior dos medicamentos psiquiátricos. Pela carta, é explícito que seu sofrimento psíquico era grande. Mas o que realmente aconteceu jamais saberemos. Teria inconscientemente procurado o suicídio? Não sei te responder“, diz Antonio de Souza Leão.

 

A carta exibe a típica autocomiseração temperada de sarcasmo. “Tomara que exista eternidade. Nos meus livros. Na minha música. Nas minhas telas. Tomara que exista outra vida. Esta foi pequena pra mim. Está chegando a hora do programa terminar. Mickey Mouse vai partir. Logo nos veremos de novo (…) Desculpem-me o mau humor. É que tudo cansa kkkkk [sic]“.

 

Um texto tocante, mas talvez não o mais memorável da obra de Rodrigo de Souza Leão. Seu peculiar coquetel de surrealismo singelo, fina ironia e melancolia confessional, em sentenças de fatura lógica, rimas claras e musicalidade imediata, será lembrada por textos como o poema “Caixa de fósforos“: “Eu não saio pra ver a vida/ Eu vivo ávido de vida/ A vida está aqui dentro/ Tão dentro que estou morto/ Pronto pra pegar fogo“.

 

 

 

Ronaldo Bressane (São Paulo-SP, 1970). Escritor, jornalista e editor. Publicou a trilogia de contos A Outra Comédia, formada por Os infernos possíveis (Com-Arte/USP, 1999), 10 presídios de bolso (Altana, 2001) e Céu de Lúcifer (Azougue, 2003), além dos volumes de poemas O Impostor (Ciência do Acidente, 2002) e Cada vez que ella dice X (Yiyi Jambo, 2008). Ao lado de Joca Reiners Terron, Marcelino Freire e Nelson de Oliveira, coeditou a coleção Risco:Ruído (DBA, 2005), que publicou Lourenço Mutarelli, Daniel Pellizzari e Paulo Leminski, entre outros. Foi pioneiro na divulgação da literatura brasileira na rede ao editar, entre 1998 e 2000, a Revista A, em que pela primeira vez foram publicados nomes como Emilio Fraia e Jorge Cardoso. Além de colaborações em sites e suplementos literários, participou da revista PS:SP (Ateliê, 2003) e das antologias Geração 90: Os transgressores (Boitempo, 2003), Paixão por São Paulo (Terceiro Nome, 2004), Fábulas da Mercearia — Uma antologia bêbada (Ciência do Acidente, 2004), além das seletas italianas Sex'n'Bossa (Mondadori, 2005), Lusofonia (Nuova Frontiera, 2006) e Il Brasile per le strade (Azimut, 2009) e da reunião hispânica 90-00: Cuentos brasileños contemporáneos (Ediciones Copé/Petroperu, 2009). Edita o blogue Impostor.

 

volta <<<