lowcura criativa
José Aloise Bahia
Partiu o
ficcionista e o poeta. Permanece a sua obra. Uma lowcura criativa em
versos, prosas, colunas, mensagens, visualidades, entrevistas e
coparticipações diversas em sites, blogs e a excepcional novela
fragmentada e vertiginosa Todos os
Cachorros São Azuis (Rio de Janeiro, RJ, 7Letras, 2008, 80 Páginas, R$
25,00), um dos 50 finalistas do Prêmio Portugal Telecom. Rodrigo de Souza
Leão, 43 anos, falecido em dois de julho de 2009, de ataque cardíaco, na
sua cidade natal, Rio de Janeiro, deixa-nos um verdadeiro tratado pessoal
sobre a esquizofrenia. Realiza saltos inimagináveis na linguagem. Tal qual
um saci, restaura na página em branco o deslimite do silêncio no grito
onírico e realista, os opostos, pulando fronteiras da imaginação.
Legitimou seu rastro. Muito além, como bem observa, de maneira
inteligente, Sérgio Medeiros: "Decerto é um diário e um libelo contra a
doença mental, aparentado com o consagrado romance Hospício é Deus, de Maura Lopes
Cançado, porém é também um relato policial desconcertante, como o Molloy, de Samuel
Beckett". Para o
autor não existiam barreiras. Na novela, observamos a quebra de várias,
através do humor fino, aforismos desatinados e delírios cromáticos. A
poesia e a prosa movem-se nas entrelinhas e cortes do tempo. São flashbacks e trailers cinematográficos em
edição constante. Na degradação dos intervalos, rumina hibridismos, tensão
do pensamento; no gesto intruso, entre remédios, a língua multicolorida.
Uma película fantasmagórica. E na sua consequência, em meio à
inconsequência, o autorretrato radical lembra Paul Celan: "Fala a verdade
quem fala sombras". A sombra é o hospício. A verdade, a literatura.
Novamente, Sérgio Medeiros vai ao ponto, reluz o lugar e o percurso de
toda uma época: "Ali, entre numerosas citações literárias, cenas de filmes
e telenovelas, clichês, grosserias e delicadezas, deparamos, num dos
pontos altos do livro, com uma alegoria carnavalesca carioca: o hospício é
a modernidade 'louca'. A América Latina de hoje. Baudelaire, um dos
personagens mais sombrios deste texto, assiste, mas 'não deixa seu olhar
fundar a modernidade' — já estamos na pós-modernidade
terceiro-mundista". Macunaíma
de passagem... Aliás, Macunaíma cibernético, fruto de duas gerações de
escritores em diálogo contínuo com outras, em detrimento daqueles que
acham que a prosa poética dos Cachorros não progride na forma e
conteúdo. É justamente nesses quesitos que ocorrem a reencarnação
gramatical e sintática, sublimação e transcendência possíveis, de autor e
obra. Fusão das personas
confessionais. Pedaços daquilo que foi e é. A estrutura narrativa, com
apurado senso estilístico, é a própria condição mental do autor. Caldeirão
louvável de fábulas, ficções científicas, depoimentos sustentados na
representação degenerativa da realidade. Nas palavras do escritor em
entrevista concedida à Juliana Krapp, meses antes do seu falecimento: "O
meu processo foi o de tentar aproximar a prosa da esquizofrenia. Para
isso, resolvi achegar a prosa à poesia. A linguagem natural de um louco é,
digamos, um pouco poética. Quando um poeta diz, por exemplo 'Guardei o Sol
em sete partes', usa uma linguagem específica. O Sol não tem partes e nem
pode ser guardado. Só num poema isso é possível. Por isso, o livro pode
ser poético. Foi isso que busquei. Fiquei possuído por esse espírito e
acho que não errei de todo. Queria também ser ágil e um pouco diferente,
sem ser chato. Já existem muitos escritores herméticos e chatos, não
queria ser mais um em que o hermetismo fosse o principal da narrativa. Mas
nunca facilitei o texto. Usei também muito a repetição. Repetia que tinha
engolido um chip, que engolira um grilo e outras coisas mais. Só não havia
engolido espadas. Aliás, nem gosto muito de ver mágica e
magia". REAL E
FICÇÃO Num mundo
em que as fronteiras do real e ficção tornam-se cada vez mais tênues, pela
revolução tecnológica, alarga-se o pensamento e o conhecimento de novas
linguagens, rompendo limites, a tentativa, firmamento e a aceitação das
alteridades — principalmente, as virtuais. De maneira semelhante, tentar
por aproximação, restabelecer uma relação construtiva com os diferentes,
no caso do livro, a prosa e a poesia como o habitat atonal da loucura (mesmo
com a repetição de frases ao longo da narração), sua simbologia intrínseca
e o cubículo, a imagem iluminada do Verbo, explode em neologismos. "Todog
são várias forças numa só. (...) Todog é a linguagem que todos os animais
falam". Reveladoras de uma liberdade do eu, sempre esbarrando em alguém
para ser livre, transitando do conhecido para o desconhecido. Cumplicidade
ao extremo com a falta, a busca desenfreada de correlações, num espaço
cada vez menos delicado. Como no
trecho: "Tudo ficou dourado. O céu dourado. O Cristo dourado. A ambulância
dourada. As enfermeiras douradas tocando-me com suas mãos douradas. Tudo
ficou azul: o bem-te-vi azul, a rosa azul, a caneta bic azul, os
trogloditas dos enfermeiros. Tudo ficou amarelo. Foi quando vi Rimbaud
tentando se enforcar com a gravata de Maiakovski e não deixei. Pra que
isso, Rimbaud? Deixa que detestem a gente. Deixa que joguem a gente num
pulgueiro. Deixa que a vida entre agora pelos poros. Não se mate, irmão.
Se você morrer, não sei o que será de mim. Penso em você pensando
Desde a
publicação dos seus primeiros versos, no começo da década de 1990, Rodrigo
de Souza Leão sempre manteve uma grande ligação com o universo literário
do Brasil. A partir do seu convívio virtual com autores dos mais distintos
segmentos, de Norte a Sul, desenvolveu como poucos um intenso trabalho de
aglutinar pessoas e ideias em suas pesquisas. Aceitou o desafio de expor a
sua condição humana, de se lançar no mundo da literatura. De construir uma
passagem memorável. Sua produção compulsiva e visceral merece ser reunida,
catalogada e publicada na forma de uma antologia. Um reflexo cristalino no
espelho da contemporaneidade.
[Publicado originalmente no caderno Pensar do jornal Estado de Minas, em 22/outubro/2009] José
Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG).
Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes
plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e
pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH). Autor de
Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros, 2004).
Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa:
Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros
Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte:
Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes
(Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e
Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova
Alexandria,
2009). |
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