TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS, DE RODRIGO
DE SOUZA LEÃO, Ramon
Mello,
e
algumas aulas de psicopatologia
Sílvia
Jardim
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Tomás Rangel ]
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Sábado, primeiro de agosto de 2009,
abri o jornal O Globo, separei o caderno Ela, o Prosa e Verso e o Segundo
Caderno, como sempre. Vi primeiro a moda, para relaxar. Mas ao pegar o
Prosa e Verso, antes de partir direto para a coluna do José Castello, fui
tragada pela foto de primeira página: um rapaz sentado de pernas cruzadas
no canto de um sofá de inusitadas grandes flores azuis. Chamada da foto: “Rodrigo de Souza Leão: morto mês
passado aos 43 anos. Autor deixou romance inédito e ainda concorre ao
Prêmio Portugal Telecom”. Li, então, de um fôlego só a matéria de
Ramon Mello, poeta e jornalista, autor de Vinis Mofados (Língua Geral), esta
poesia rápida que eu só viria a conhecer dois anos mais tarde:“encontros podem/ser mais do/que
estratégias/acasos carências/dominicais” ("Mosaicos", p.
49).
Fiquei encantada com os trechos de um dos romances deixados por
Souza Leão e que ocupavam os cantos da página dois do caderno: “Faz frio sempre em mim. Sou um cara
sem amor. Sem carinho. Sem afeto. Acumulei desafetos nos empregos. Fui
corretor como Kafka. Devedor como Balzac. Isso não me fez um bom escritor.
Estou dando voltas. Círculos que me prendem em círculos. Vou andando em
uma poesia visual. Vou cuspindo reticências. Escarrando sangue de
vírgulas. Não uso vírgulas. As vírgulas parecem ouvidos. Elas só querem
escutar algo: alguma palavra doce”.
Logo uma notícia na matéria me atraiu: Rodrigo de Souza Leão havia
deixado o romance Todos os
cachorros são azuis publicado pela 7Letras. Havia dois anos eu vinha
trabalhando com literatura em aulas práticas para alunos de graduação da
Faculdade de Psicologia da UFRJ quando estes passam pela disciplina de
Psicopatologiano Instituto de Psiquiatria (IPUB) da mesma universidade.
Nos dois primeiros semestres dessa experiência tinha trabalhado com A redoma de vidro, de Sylvia
Plath. Depois Diário de
Hospício e Cemitério dos
Vivos, de Lima Barreto. Naquele momento estava me preparando para
trabalhar com O Alienista, de
Machado de Assis com a próxima turma. Naquela manhã de sábado, a ideia
“ano que vem vou tentar trabalhar com este autor” não mais me saiu da
cabeça.
Na segunda-feira seguinte, levei para a reunião com as monitoras a
matéria do Prosa e Verso. Mostrei-a a Rita Isadora Pessoa e Carolina
Cibella. Rita disse: “Conheço o Ramon. Posso falar com ele”. “Fala, por
favor”, foi a minha resposta.
Saí em campo para ler Todos
os cachorros são azuis enquanto lia Machado de Assis. Não foi difícil
de achar. Li Souza Leão nas férias, mas aquele título para mim já era uma
poesia, uma frase poética fulgurante como o sofá da casa de Rodrigo de
flores azuis, na foto da matéria assinada por Ramon.
Março
de 2010 chegou e com ele a nova turma para as aulas práticas. As monitoras
e eu havíamos lido Todos os
cachorros... e decidido: “É isso aí! É muito bom. Vamos lá. O que será
que os alunos vão achar?”.
Rita
havia falado com Ramon que tinha se disposto a vir ao IPUB falar conosco,
conversar sobre a obra do Rodrigo, seu encontro com ele e a curadoria do
espólio artístico de Souza Leão. Ramon chegou um pouco atrasado para o
nosso encontro, mas o bom foi que nossa conversa não parava e a aula tinha
que começar. Ramon entrou na sala de aula, que nesse dia foi a nossa
conversa diante dos alunos que tinham lido Todos os cachorros são azuis, e
nos encontrávamos naquele momento no anfiteatro Henrique Roxo, nome de um
dos psiquiatras de quem Lima Barreto fala em Diário de Hospício. Ramon leu
poemas de Rodrigo e prestou depoimentos tão lúcidos quanto encantados com
a obra do escritor assumidamente esquizofrênico. Contou também que havia
obtido ainda em vida de Rodrigo a autorização para adaptar Todos os cachorros... para o
teatro pois Ramon também é teatrólogo e ator. Nessa mesma ocasião fez a
mim o convite para participar do laboratório da peça. Apesar da minha
inexperiência absoluta no assunto, aceitei. A possibilidade de levar esse
texto para um palco me fisgou de primeira pelo desafio que imaginei seria.
Além disso, se estava encantada com a escrita de Souza Leão não fiquei
menos com o entusiasmo, a sensibilidade e a capacidade de trabalho de
Ramon Mello.
A
recepção dos alunos ao texto de Souza Leão era espetacular: ganhou de
Sylvia Plath, Lima Barreto e Machado de Assis. Foi unânime a preferência
pela contemporaneidade da estrutura literária, da musicalidade e da poesia
em prosa de Rodrigo apoiada no bom e no melhor da tradição, Rimbaud e
Baudelaire dentre outros.
Faz
parte do exercício da aula prática que cada aluno escreva um comentário
sobre o texto literário que está sendo trabalhado. Surgiram muitos
escritos elogiosos, mas especialmente sensíveis ao incômodo que a
literatura de Rodrigo causa. Incômodo que ao invés de afastar o leitor, o
conduz a recônditos da alma humana que não são propriamente escondidos,
mas podem ser encontrados em qualquer esquina. Além disso, ao trazer de
modo poético para a luz do dia a experiência psiquiátrica da loucura, da
medicação e da internação da doença mental, aproxima-nos desse campo sem
negá-lo, sem dramatizá-lo, sem vitimização, com a coragem de artista que
se desnuda não para se mostrar, mas para recriar a realidade. Costumo
dizer nas aulas práticas que há um duplo trabalho na obra de Souza Leão: o
do delírio (como disse Freud) e a do texto literário que compõe com esses
fragmentos de suas vivências.
Quais
foram os delírios e as alucinações de Rodrigo? Jamais o saberemos. Sempre
poderemos sentir junto os delírios e as alucinações que criou para seus
personagens intermináveis em narração poética em múltiplas vozes. Assim
somos testemunhas de sua lucidez e de seu sofrimento. Como testemunhas,
nos irmanamos. Como leitores, as alucinações, os delírios, a lucidez e a
angústia são nossos, quando conseguimos lê-lo até o fim: “É verdade que as alucinações são
coisas negativas. Mas bem que poderiam ser doutrinadas para ser
positivas” (p. 47). Souza Leão faz aqui um trocadilho com a
fenomenologia contemporânea que classifica os sintomas da psicose em
positivos e negativos. No lastro de Machado de Assis, Lima Barreto e
Plath, dentre muitos outros, mas esses especificamente, não deixa a
ciência de fora, enfrenta-a em seus próprios termos.
Mas
Rodrigo por Ramon ainda não tinha concluído todas as retribuições ao meu
encantamento com ambos. O ano de 2011 chegou e com ele a prometida
montagem da peça Todos os cachorros
são azuis. Como prometido também chegou já via produção, o convite
para participar do ensaio aberto da peça teatral, cuja direção estava
entregue a Michel Bercovitch. Assistir esse jovem conjunto de atores e
diretores em um ensaio aberto foi uma experiência comovente. Foram preciso
cinco atores, cinco presenças, cinco vozes para compor o narrador de Todos os cachorros são azuis: as
de Bruna Renha, Camila Rhodi, Gabriel Pardal, Natasha Corbelino e Ramon
Mello. E um assistente de direção para o Michel, o Flávio Pardal. Uma
experiência comovente por me levar do campo sagrado da minha prática como
psiquiatra, aprendiz de professora de psicopatologia para o terreno
sagrado de um palco de teatro. Comovente, porque o trabalho que tinham
feito até ali já prenunciava o que viria/veríamos depois no palco do
Teatro Maria Clara Machado, no Planetário da Gávea, de 10 de julho a 04 de
setembro de 2011. As soluções de cenário e composição encontradas e
exploradas para a narrativa de Souza Leão, assim como a entrega emocional
da direção e dos atores, era contagiante.
Tinha
levado comigo o melhor comentário escrito por uma aluna da turma do
primeiro semestre de 2010, a Jessica da Silva David. Era o resumo mais
sensível e mais bem escrito que conhecia do livro e queria compartilhá-lo
com aquela outra turma, “Os Azuis”. Eu o li em voz alta no palco
onde na ocasião o grupo, então, me assistia. Todos adoraram. Jessica foi
aprovada como critica literária em público depois de se graduar em
Psicologia. “Os Azuis” também decidiram com o consentimento dela publicar
a resenha de Jessica no belo programa da peça. Fiquei muito orgulhosa.
Mérito todo dela.
Assistir
da plateia a peça toda pronta no segundo fim de semana de atuação foi mais
uma novíssima experiência. Estava quase mais ansiosa que o grupo com as
críticas. Duvidava do que eu mesma sentia: está bom demais; eles fizeram
um grande trabalho; está lindo. Temos Rodrigo de Souza Leão no palco:
força poética, som, movimento e alguma doçura.
Mas
e daí? Sou psiquiatra, não entendo nada de teatro. Talvez seja um pouco
poeta como todo o mundo e saiba só sentir. Mas aí veio a última frase, o
encerramento do último ato e estávamos todos de pé batendo palmas e havia
mágica no ar.
E
como se não bastasse, veio a Bárbara Heliodora e disse tudo aquilo no
Segundo Caderno de domingo, 24 de agosto de 2011.
Parabéns
e obrigada, meu querido Ramones e demais
"Azuis".
Sílvia
Jardim. Psiquiatra/IPUB-UFRJ e
professora.
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