[28] duas vezes flamengo

 
 

Glauco Mattoso

 

 

©cristina carriconde

 

 

Não é novidade, para os meus leitores, que eu jogo gazolina na fogueira e augmento um poncto quando conto um conto. Faz parte do show do poeta. Quando o thema é futebol, claro que eu sou daquelles que exclamam "Chupa!" a cada gol marcado, torcendo menos a favor de quem ganha e mais contra quem perde. Perdedor que sou na vida, encarno o torcedor dum Juventus em São Paulo ou dum Ollaria no Rio, mas, em compensação, desforro commemorando quando um pequeno batte num grande e, mais ainda, quando dois grandes morrem abbraçados. Quero, emfim, que o circo pegue fogo. Quero ver neguinho soffrendo. Principalmente si o cara for fanatico por algum time dicto "grande". Neste poncto estou com o Flavio Prado, quando, no programma "Esporte em Discussão" (sobre o qual fiz, aliaz, uns sonetilhos), defende o maximo de sarro tirado por quem ganha sobre quem perde, ou por torcedores de todos os times sobre o torcedor dum time perdedor.

 

Na litteratura, nosso futebol ainda não foi sufficientemente thematizado, siquer pelo lado da celebração cultural, muito menos pelo lado da violencia parallela, protagonizada pelas torcidas que se hostilizam e que estrellam o mais espectacular exemplo de sadomasochismo collectivo. Foi justamente essa faceta extracampo que priorizei em meus sonetos e contos futebolisticos. Um desses contos é "A chanca e a cancha", que entrou na recemlançada collectanea TRIPÉ DO TRIPUDIO E OUTROS CONTOS HEDIONDOS, lançada pelo sello Tordesilhas. Alli a violencia entre clubes rivaes attinge as ultimas consequencias do requincte sadico. Quem curte achará facil o livro à venda. Para completar meu "merchan", recordo que, nas bancas, tambem se encontra uma anthologia de auctores que thematizaram o esporte das massas menos cinzentas. Lançado pela revista BRAVO!, o livro se chama, obviamente, LITTERATURA E FUTEBOL. Alli apparece um soneto no qual fallo da truculencia dentro de campo: "Soneto para o jogo bruto".

 

Nada a accrescentar sobre as impulsivas e vingativas reacções dos torcedores, uma vez que futebol é, antes de tudo, paixão. O lado racional fica por conta dos commentaristas, ou nem delles. Ao litterato cabe interpretar racionalmente a irracionalidade. Ainda assim, ha espaço para alguns attritos.

 

O fallecido ficcionista e poeta carioca Rodrigo Leão, flamenguista roxo, costumava me ligar sempre que seu Mengão entrava ou sahia de campo. Emquanto eu lhe promettia que, desta vez, o Madureira ou o Bangu me fariam justiça, para não fallar do Ollaria, Rodrigo soltava uma gargalhada e eu me alegrava por dar-lhe esse motivo para descontrahir-se. Elle merecia. Não viveu para ver os actuaes momentos de gloria rubronegra, mas pelo menos demos boas risadas da afflicção nas archibancadas.

 

Certa vez, enviei-lhe meu ultraviolento poema "Vareio ao vascaino". Rodrigo mostrou-o a um amigo vascaino, que se indispoz com elle e commigo só por causa disso... Mais recentemente, fiz dois sonetos, agora sobre o Mengo, mas ja não pude mostral-os ao amigo saudoso. Mostro-os a vocês, para que vejam como as attitudes de qualquer torcedor são immediatistas e inconsequentes. No primeiro, attacco o flamenguista; no segundo, exalto-o. Si todos somos contradictorios (e eu professo o paradoxo em tudo), o futebol é a prova mais eloquente dessa incoherencia que, affinal, é a coherencia da natureza humana. Aqui vão elles.

 

 

ESPIRITO ESPORTIVO [soneto #4177]

 

Eu sou, quanto ao Flamengo, indifferente.

Si fosse carioca, torceria

ou para o Madureira, ou Ollaria.

Aqui, sou do Juventus fan doente.

 

Mas pilho-me putissimo somente

si alguem, sendo paulista, tem mania

de "roxo flamenguista" e tripudia,

no espirito de porco, sobre a gente.

 

Paulista que se affirma flamenguista

devia ser lynchado em plena praça,

até queimado vivo, caso insista!

 

Meu odio de esportivo ardor não passa.

Porem, si um trahidor não baixa a crista,

merece que lhe acabem com a raça!

 

 

 

A DOR DO TORCEDOR [soneto #4535]

 

Si digo que não tenho inveja, minto.

Paixão, no futebol, resume tudo.

Reflicto: um flamenguista é mais sortudo.

Inveja do Flamengo, eis o que sinto.

 

O time nunca perde! O meu em quincto,

em sexto, em nono, em ultimo, raçudo

ou não, sempre termina! Meu escudo

escondo, até: depende do recincto.

 

Me disse alguem: "Mas Glauco, é só você

torcer para o Flamengo! Ser feliz

depende de você!" Reajo: "O que?"

 

"Ser cego e injustiçado eu jamais quiz!

Então posso escolher? Pois bem: me dê

visão de volta e um premio ao que ja fiz!"

 

 

 

 

[Attenção! Quaesquer textos assignados por Glauco Mattoso estarão em desaccordo com a orthographia official, pois o auctor adoptou o systema etymologico vigente desde a epocha classica até a decada de 1940.]

 

 

[Publicado originalmente na coluna Anarchico Archaico, do autor, em Cronópios]

 

 

 

Glauco Mattoso (paulistano de 1951) é poeta, ficcionista e ensaísta, autor de mais de trinta títulos, entre os quais as antologias Vícios perversos: contos acontecidos e Poesia digesta: 1974-2004, além dos romances Manual do podólatra amador: aventuras & leituras de um tarado por pés e A planta da donzela.

volta <<<