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duas vezes flamengo
Glauco Mattoso
©cristina carriconde
Não
é novidade, para os meus leitores, que eu jogo gazolina na fogueira e
augmento um poncto quando conto um conto. Faz parte do show do poeta.
Quando o thema é futebol, claro que eu sou daquelles que exclamam "Chupa!"
a cada gol marcado, torcendo menos a favor de quem ganha e mais contra
quem perde. Perdedor que sou na vida, encarno o torcedor dum Juventus em
São Paulo ou dum Ollaria no Rio, mas, em compensação, desforro
commemorando quando um pequeno batte num grande e, mais ainda, quando dois
grandes morrem abbraçados. Quero, emfim, que o circo pegue fogo. Quero ver
neguinho soffrendo. Principalmente si o cara for fanatico por algum time
dicto "grande". Neste poncto estou com o Flavio Prado, quando, no
programma "Esporte em Discussão" (sobre o qual fiz, aliaz, uns
sonetilhos), defende o maximo de sarro tirado por quem ganha sobre quem
perde, ou por torcedores de todos os times sobre o torcedor dum time
perdedor.
Na
litteratura, nosso futebol ainda não foi sufficientemente thematizado,
siquer pelo lado da celebração cultural, muito menos pelo lado da
violencia parallela, protagonizada pelas torcidas que se hostilizam e que
estrellam o mais espectacular exemplo de sadomasochismo collectivo. Foi
justamente essa faceta extracampo que priorizei em meus sonetos e contos
futebolisticos. Um desses contos é "A chanca e a cancha", que entrou na
recemlançada collectanea TRIPÉ DO TRIPUDIO E OUTROS CONTOS HEDIONDOS,
lançada pelo sello Tordesilhas. Alli a violencia entre clubes rivaes
attinge as ultimas consequencias do requincte sadico. Quem curte achará
facil o livro à venda. Para completar meu "merchan", recordo que, nas
bancas, tambem se encontra uma anthologia de auctores que thematizaram o
esporte das massas menos cinzentas. Lançado pela revista BRAVO!, o livro
se chama, obviamente, LITTERATURA E FUTEBOL. Alli apparece um soneto no
qual fallo da truculencia dentro de campo: "Soneto para o jogo
bruto".
Nada
a accrescentar sobre as impulsivas e vingativas reacções dos torcedores,
uma vez que futebol é, antes de tudo, paixão. O lado racional fica por
conta dos commentaristas, ou nem delles. Ao litterato cabe interpretar
racionalmente a irracionalidade. Ainda assim, ha espaço para alguns
attritos.
O
fallecido ficcionista e poeta carioca Rodrigo Leão, flamenguista roxo,
costumava me ligar sempre que seu Mengão entrava ou sahia de campo.
Emquanto eu lhe promettia que, desta vez, o Madureira ou o Bangu me fariam
justiça, para não fallar do Ollaria, Rodrigo soltava uma gargalhada e eu
me alegrava por dar-lhe esse motivo para descontrahir-se. Elle merecia.
Não viveu para ver os actuaes momentos de gloria rubronegra, mas pelo
menos demos boas risadas da afflicção nas
archibancadas.
Certa
vez, enviei-lhe meu ultraviolento poema "Vareio ao vascaino". Rodrigo
mostrou-o a um amigo vascaino, que se indispoz com elle e commigo só por
causa disso... Mais recentemente, fiz dois sonetos, agora sobre o Mengo,
mas ja não pude mostral-os ao amigo saudoso. Mostro-os a vocês, para que
vejam como as attitudes de qualquer torcedor são immediatistas e
inconsequentes. No primeiro, attacco o flamenguista; no segundo, exalto-o.
Si todos somos contradictorios (e eu professo o paradoxo em tudo), o
futebol é a prova mais eloquente dessa incoherencia que, affinal, é a
coherencia da natureza humana. Aqui vão elles.
ESPIRITO
ESPORTIVO [soneto #4177]
Eu
sou, quanto ao Flamengo, indifferente.
Si
fosse carioca, torceria
ou
para o Madureira, ou Ollaria.
Aqui,
sou do Juventus fan doente.
Mas
pilho-me putissimo somente
si
alguem, sendo paulista, tem mania
de
"roxo flamenguista" e tripudia,
no
espirito de porco, sobre a gente.
Paulista
que se affirma flamenguista
devia
ser lynchado em plena praça,
até
queimado vivo, caso insista!
Meu
odio de esportivo ardor não passa.
Porem,
si um trahidor não baixa a crista,
merece
que lhe acabem com a raça!
A
DOR DO TORCEDOR [soneto #4535]
Si
digo que não tenho inveja, minto.
Paixão,
no futebol, resume tudo.
Reflicto:
um flamenguista é mais sortudo.
Inveja
do Flamengo, eis o que sinto.
O
time nunca perde! O meu em quincto,
em
sexto, em nono, em ultimo, raçudo
ou
não, sempre termina! Meu escudo
escondo,
até: depende do recincto.
Me
disse alguem: "Mas Glauco, é só você
torcer
para o Flamengo! Ser feliz
depende
de você!" Reajo: "O que?"
"Ser
cego e injustiçado eu jamais quiz!
Então
posso escolher? Pois bem: me dê
visão
de volta e um premio ao que ja fiz!"
[Attenção!
Quaesquer textos assignados por Glauco Mattoso estarão em desaccordo com a
orthographia official, pois o auctor adoptou o systema etymologico vigente
desde a epocha classica até a decada de 1940.]
[Publicado
originalmente na coluna Anarchico
Archaico, do autor, em Cronópios]
Glauco Mattoso (paulistano de 1951) é poeta, ficcionista e ensaísta, autor de mais de trinta títulos, entre os quais as antologias Vícios perversos: contos acontecidos e Poesia digesta: 1974-2004, além dos romances Manual do podólatra amador: aventuras & leituras de um tarado por pés e A planta da donzela. |
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