A lucidez da loucura
Obra
póstuma de Rodrigo
de Souza Leão
mostra
seu lado esquizofrênico
Haron Gamal
©Cristina Carriconde
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Pode-se
dizer que loucura e literatura (perdoe-me a rima) sempre tiveram algo em
comum. A primeira caracteriza-se por uma certa desordem, pela inauguração
de um sentido que não é o da maioria. A boa literatura, sobretudo a
poesia, caminha na mesma direção. Há quem diga que a literatura é o único
lugar onde se pode instaurar a subversão. Sua sintaxe, para ser
compreendida, necessita de uma outra ordem. Tira-se o sentido original de
uma palavra e está, em princípio, estabelecido o caos; muda-se a
combinação entre determinados vocábulos e este caos se estende ao
infinito. Desde a antiguidade, filósofos que pensaram a literatura,
começando por Aristóteles, preocuparam-se em escrever algum tipo de arte poética, quem
sabe um modo de limitar o caos a determinada
disciplina.
Rodrigo
de Souza Leão (1965-2009), em O
esquizoide (livro póstumo), começa sua narrativa dizendo: “Eu sou
esquizofrênico”. Verdade. O autor transitou entre o mundo da lucidez —
digamos assim sobre a realidade que nos cerca — e internações em clínicas
psiquiátricas. Ao mesmo tempo, tornou-se escritor, escreveu romances.
Portanto, algo que pertence ao gênero da ficção. O leitor, inquieto e em
dúvida, poderá perguntar: como um esquizofrênico, alguém que possui sérios
transtornos mentais, pode escrever uma obra de arte plena de sentido?
Teríamos então que compactuar com o pedido deste narrador em primeira
pessoa: “Peço que duvidem de mim”. Mas não é isso que acontece. Seguimos
Rodrigo em seu périplo de vida e, mesmo sem querer, acreditamos nele. Esse
narrador é muito convincente. Como duvidar de algo que é comum a todos
nós: o estranhamento que a própria vida e literatura refletem e
provocam?
Esta
arte feita de palavras, para ser verdadeira é constituída de duplos. E
nada melhor do que o romance de Rodrigo para reafirmar essa verdade.
Sua
história começa quando ele já tem vinte e três anos e tenta levar uma vida
comum, como todos os jovens. Mas vem a crise, e a partir dela tudo se
transforma. O que a provocou, para ele, no entanto, não é fruto de uma
imaginação fértil, mas a mais pura verdade. Para nós outros, os da esfera
da normalidade, tudo não deixa de ser criação de sua mente.
O
narrador construirá toda uma vida que ora beira a realidade comum a todos,
como a leitura, a escrita, o amor e o desamor a uma mulher, o afeto e o
desafeto aos (e dos) pais e familiares, ora trilha a realidade comum
apenas a ele, onde estará sempre presente a “bomba” da qual ele se diz
inoculado, a possibilidade de que ela, de um momento para outro, exploda
dentro dele e acabe com tudo. Ainda há as pessoas que o perseguem. Enfim,
Rodrigo, também o nome do narrador, vive duplamente, como a necessidade da
palavra e seu desdobramento em metáforas.
Optando
apenas pelo âmbito literário, temos uma narrativa em linguagem cotidiana,
que apesar de poucas páginas, descreve em pormenor as inquietações comuns
à maioria das pessoas.
Freud,
codificando a psicanálise, já anunciava que o sintoma é uma espécie de
linguagem, uma manifestação de busca da cura, um tipo de reconstrução da
realidade em forma de ficção. O
esquizoide insere-se numa ordem que tem como ponto de partida uma
aparente desordem, semelhante ao estatuto da literatura como reconstrução
e atribuição de sentido a uma determinada realidade. Através dela, podemos
perceber o grito de dor e dúvida de toda a humanidade. A partir desse
ponto de vista, o livro apresentaria uma questão que, na verdade, é comum
a todo ser humano: não estaríamos tão distantes do modo de vida do
narrador deste livro. Sentiríamos como ele, ao tentar definir sua doença:
“É acordar no escuro estando tudo claro. É como se só existisse pesadelo
dentro do sonho. É ir dormir e quando acordar ver que começa mais uma vez
o pesadelo. É ouvir vozes de uma ventania. Ser levado rumo à floresta
escura e ao abismo. Ser esquizofrênico é descer numa montanha-russa que
não termina nunca. Ou simplesmente tomar os remédios”. Por isso, a nós
“normais”, o mundo-shopping-center-parque de diversões dos dias de hoje...
Tantos os remédios!
Ler
a obra de Rodrigo, não só este livro como os anteriores (Todos os cachorros são azuis, Me roubaram uns dias contados), é
tocar numa questão desagradável mas necessária. Se o sintoma é uma espécie
de linguagem que tenta recuperar uma realidade perdida, a literatura como
linguagem tornar-se-ia algo comum tanto aos “loucos” como aos sãos,
mostrando que a fronteira que nos separa não se mostra tão
distinta.
[Publicado
originalmente no Jornal do Brasil digital, em 13 de agosto de
2011]
Haron Gamal. Professor e doutor em literatura brasileira pela UFRJ.
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