QUANDO O GArOTO DO CACHORRO

MARrOM ENCONTrA

O GArOTO DO CACHOrRO AZUL

 
 

Cecília Borges

 

 

 

 

Quis estar lá duas vezes. Mas prolonguei a estadia em Brasília e no domingo seguinte tentei acabar com a água do Rio de Janeiro. Repetidamente, limpei com dedicação cada unha dos pés e das mãos. Ih. Não vou chegar a tempo, constatei aliviada. Li Todos os cachorros são azuis na esquina do quarto, dividindo o fôlego com as cartas escritas pelo meu irmão enquanto ficou internado. Foi preciso muita coragem para assistir à peça de teatro adaptada do livro de Rodrigo Souza Leão.


Ensaiei uma crise de mau humor poucas horas antes de partir para a Gávea. O amigo não se comoveu: vigiou o relógio e escolheu minha roupa. No trajeto, senti uma saudade brutal do meu irmão e, por uma série de motivos, essa saudade é sempre dominada pela culpa. O primeiro surto aconteceu em 2005. No mesmo ano, me mudei para o Rio porque perdi a fé e ninguém pode perder a fé diante de quem só tem isso para se agarrar. Quando fiz as malas, descobri que não era mãe. Até então era este o papel que eu pensava ter. Tenho a impressão de que ele também acreditava nisso. Mas essa é a minha história.


Os atores colocam em cena fragmentos de um autor já desintegrado. Mas a narrativa está longe do nonsense. Em cacos, a arte sobrevive assim como a esquizofrenia. Há mensagens claras de amor e delicadeza. Mas, entenda, claridade e lucidez não são sinônimos, muito menos para um esquizofrênico. Todog é uma homenagem nítida à vida que se sobrepõe à loucura, mas não deixa de assumi-la. No livro Rodrigo declara, dispensando nosso juízo: "Nunca comi merda. Nem sou dado a rituais macabros de existência. Sou um louco light, versão diet. Apesar do meu problema com o chip ser punk demais". Gabriel Pardal e Ramon Mello, em especial, representam com generosidade os Rodrigos que percorrem minha genética (Obrigada, queridos).


O cachorro do meu irmão é marrom. É um boxer, musculoso e sereno, que o acompanha pela casa todo o tempo. Na pior crise, foi o único a levar porrada para em seguida ser nomeado Grande Irmão, com o meu em prantos. Tonico fez família recentemente. Meu irmão se formou em Gestão Ambiental, fez estágio no zoológico, está procurando trabalho (o plano é ir para uma ONG na Amazônia) e é apaixonado por fotografia, música e poesia. Vários amigos jogam sinuca com ele aos domingos. Meu irmão gosta de pescar, chegou ontem de Formoso do Araguaia (onde tirou essas fotos meses atrás).

 

 


Ele não gosta de briga. Ele gosta dos pensamentos simples. Essa é a linguagem que, para mim, ser humano comum, geralmente precisa ser traduzida. Veja só, Rodrigo Super-Herói, precisamos traduzir Todog! O mundo calmo e de amor é uma estranha teoria. Talvez esse seja nosso grilo.


A plateia engole: "Com quantos paus se faz a canoa da realidade?".


Eu já descobri que ela afunda. Há dias duros, prova de natação em mar aberto, mas é bom que seja assim.

 

 

 

Cecília Borges é escritora. Vive no Rio de Janeiro e bloga em http://www.cecilia-borges.blogspot.com.

 

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