mergulho na mente esquizofrênica
Andrea Carvalho Stark
[ Foto Tomás Rangel
]
A
palavra literária e a cena dramática se encontram em Todos Os Cachorros São Azuis,
espetáculo dirigido por Michel Bercovitch e baseado no livro homônimo de
Rodrigo de Souza Leão, escritor que faleceu aos 43 anos em decorrência da
esquizofrenia.
No
palco, grades móveis dividem o espaço. Vemos cubículos por onde cinco
pessoas em posição fetal, e vestidas com cores neutras, se esgueiram,
movimentam, falam de si e do que estão vivendo ali. Estão dopados, mas
estão conscientes, mais do que nunca. Representam um só personagem em
momentos diversos. Tudo é contido e controlado, mas há arroubos que vão
crescendo e se fragmentando, como uma pessoa que tenta direcionar suas
próprias forças entre idas e vindas, fracassos e recomeços. Assim
poderíamos resumir “Todos Os Cachorros São Azuis”, peça baseada no livro
homônimo do poeta e romancista carioca Rodrigo de Souza Leão, falecido em
2009, aos 43 anos, em uma clínica psiquiátrica do Rio de
Janeiro.
Resumir,
no entanto, não significa despistar a experiência teatral que é
apresentada nesse espetáculo a partir do referido livro, com o qual o
autor concorreu como finalista, em 2009, ao Prêmio Portugal Telecom — uma
das maiores láureas da Literatura lusófona. A obra é uma narrativa
autobiográfica fragmentada, sobre impasses, vivências e soluções íntimas
de um esquizofrênico em busca de saídas e de formas para sobreviver ao
próprio caos. Um texto de extrema criatividade e sensível beleza que nos
faz repensar a loucura como criação artística, especialmente naquela arte
que tem a palavra como matéria-prima.
Literatura
e loucura
Souza
Leão viveu sua breve vida entre internações, leituras e literaturas e em
sua obra, como a apresentada pelo espetáculo, onde encontramos claras
citações aos poetas franceses Rimbaud e Baudelaire, ao português Fernando
Pessoa e ao brasileiro Manoel Bandeira. Escrever para o autor era uma
forma de se ater, como controle, ligação e completude de sua mente
fragmentada por diversos estados provocados pela esquizofrenia. Seu texto
reflete essa condição pessoal : é um autor que se escreveu e tentou domar
à força os seus próprios leões. Não precisou se preocupar em criar
ficções, pois sua própria vida já lhe era inacreditável o suficiente.
Souza Leão é plateia e ator, é sujeito e objeto e levou todos esses
estados para seus escritos, muitos ainda inéditos.
O
poeta e ator Ramon Mello é o responsável pela publicação da obra do
colega, e se empenha em divulga-lo com muita generosidade e dedicação. É
dele, também, a idealização desta montagem teatral à qual integra como
intérprete.
Das
páginas ao palco
O
espetáculo não tem um texto escrito especialmente para o teatro ou para
ser falado, mas há fortes traços de oralidade em tom de diário-desabafo. É
certo que, encontrar o tom e a carpintaria dramática mais coerente foi um
grande desafio para o elenco e toda equipe regida pelo diretor Michel
Bercovitch.
Face
a essa multiplicidade possível de caminhos que o texto literário aponta, o
resultado é um espetáculo impactante que se utiliza com maestria dos
vários recursos cênicos para contar o cotidiano das imagens e alucinações
provocadas pelos seres que nascem dos fragmentos da realidade vivida pelo
autor. Desse modo, a luz, o cenário, o movimento e a trilha sonora se
relacionam para esse fim; compõem esse único personagem interpretado pelos
cinco atores. São linguagens de um mesmo peso, específicos em uma função
de delimitar e teatralizar o que foi escrito literariamente em tom
confessional.
Sobre
a dramaturgia coletiva — assinada pelo diretor, Ramon e Flávio Pardal (com
colaboração de Manoela Sawitzki) — poderia haver alguns cortes um pouco
maiores em função de se estabelecer um ritmo mais concentrado no final. Há
alguns momentos em que pensamos chegar ao fim, mas depois outras situações
nos são apresentadas, o que causa uma sensação dispersa quando há vários
momentos que soam finalizadores, mas que não se
concluem.
Todos
são um azul
O
elenco composto pelas atrizes Bruna Renha, Camila Rhodi, Natasha Corbelino
e pelos atores Gabriel Pardal e Ramon Mello, demonstra homogeneidade nas
atuações, mas mesmo assim, cada um tem a liberdade de criar propriamente
uma interpretação que se juntam como em um coro harmonioso. Há certa
uniformidade, pois cada um faz um mesmo personagem narrador, com poucos
momentos em que o diálogo ou outros personagens se fazem
presentes.
A
direção de arte de Rui Cortez criou diversas grades móveis que são
movimentadas em cena pelos próprios atores, criando diferentes espaços: é
um muro que se sobre e se debruça, são as paredes de um cubículo de
hospício, se expandem, fazendo o espaço e a própria personagem se
expandirem nos momentos em que há o significado do espaço, do retorno e da
liberdade presentes. Um efeito de movimento e marcações bem interessantes.
A luz de Tomás Ribas e a trilha-sonora de Rafael Rocha dialogam com o
personagem, como um eco de seu pensamento nos momentos de dor de
liberdade, de retração e expansão.
O
resultado de encontros dessas linguagens é bem sucedido através da direção
de Bercovitch e são essenciais para fornecer unicidade e coerência ao
personagem em sua origem fragmentada e plural. O diretor e toda equipe
criam um espetáculo poético e inventivo e que ainda nos deixa os azuis da
palavra do poeta Souza Leão. Felizmente.
Todos
Os Cachorros São Azuis
Sábado,
às 21h e domingo, às 20h. Até 4 de Setembro.
Teatro
Maria Clara Machado – Rua Padre Leonel Franca, 240 | (21) 2274-7722
R$ 30,00
[Publicado originalmente no Caderno Teatral, clique aqui.]
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