'Vivo
numa bomba-relógio
circular'
Rodrigo de Souza Leão morreu
aos 43 anos deixando um romance em papel e poemas virtuais que delineiam a
esquizofrenia
Márcia Vieira - O Estado de
S.Paulo
A literatura e a
esquizofrenia vieram juntas há exatos 20 anos. Foi depois do primeiro
surto, aos 23, que Rodrigo de Souza Leão começou a escrever ficção sem
parar. Em algumas vezes, versos rabiscados no primeiro pedaço de papel que
aparecesse pela frente. Noutras, poesias curtas em revistas literárias na
internet. O mundo virtual era sua vitrine. Rodrigo editava uma revista
literária, escrevia para sites e mantinha um blog, o Lowcura. No ano
passado, conseguiu realizar um sonho: publicou pela editora 7Letras seu
primeiro livro em prosa, Todos os
Cachorros São Azuis. Ficou eufórico por ser um dos 50 finalistas do
Prêmio de Literatura Portugal Telecom, ao lado de nomes como José
Saramago, Manoel de Barros e Milton Hatoum. O romance, quase uma
autobiografia, é uma imersão no mundo da
esquizofrenia.
Rodrigo morreu na semana passada, aos
43 anos, de ataque cardíaco, amarrado a uma cama numa clínica psiquiátrica
no Rio onde tinha pedido para ser internado uma semana antes temendo um
surto. Na saída para a clínica se recusou a entrar no carro dirigido pela
mãe. Tinha medo de não se controlar, tomar o volante e acabar provocando
um acidente. Foi de táxi agarrado em Dulce, a irmã caçula. "Acho que ele
se libertou. Era muito sofrimento", desabafa a mãe. A vida foi dura para
Rodrigo. Assim como para os pais, Sylvia e Antonio, e os irmãos mais
novos, Bruno e Dulce. No dia 25 de junho, antes de sair para a clínica,
Rodrigo escreveu uma carta para a família, com tom de
despedida.
"Vocês sabem muito bem que a minha
vida não foi fácil. Sofreram muito. Sofremos juntos. Sofremos nós. Eu
gostei da vida e valeu a pena. (...)Tomara que exista eternidade. Nos meus
livros. Na minha música. Nas minhas telas. Tomara que exista outra vida.
Esta foi pequena pra mim. Está chegando a hora do programa terminar.
Mickey Mouse vai partir. (...) Nunca tenham pena de mim. Nunca deixem que
tenham pena de mim. Lutei. Luto sempre. Desculpem-me o mau humor. É que
tudo cansa".
Difícil saber o que
detonou a última crise. Dez dias antes, tinha ido ao ar uma cena da novela
Caminho das Índias, de Glória Perez, em que Tarso (Bruno Gagliasso), numa
crise esquizofrênica, atira em Murilo (Caco Ciocler). Rodrigo ficou
perturbado. "Ele me disse: "Mas esquizofrênico não mata. Meus amigos e
vocês vão ficar com medo de mim, achando que sou um assassino?", lembra a
mãe. Não adiantou a família repetir por dias seguidos que aquilo era
ficção.
"Ele já não vinha muito
bem", lembra Dulce. "Tinha delírios, tomava muitos remédios, achava que
agentes tinham colocado um chip nele. Depois da cena da novela, ficou com
medo de matar o irmão". O chip e os agentes estão no relato do narrador de
Todos os Cachorros São Azuis e
fazem parte também da loucura do personagem da novela. "O Tarso tem muito
do Rodrigo. Meu irmão tinha mandado o livro para a Glória logo que a
novela começou. Não sei se ela leu", diz Dulce. Sim, leu. "O livro é
maravilhoso e me inspirou, assim como outros depoimentos de
esquizofrênicos, a escrever as cenas do Tarso", confirma a
novelista.
O chip e os agentes apareceram desde o primeiro surto.
Rodrigo trabalhava no escritório da Caixa Econômica Federal. Achou que
estava sendo perseguido até pelo presidente da CEF. Desceu 43 andares de
escada no escuro para fugir dos tais agentes. Descontrolado, foi internado
pela primeira vez com o diagnóstico de esquizofrenia, doença mental que se
caracteriza por alucinações e mania de perseguição. Anos depois, veio a
segunda internação, quando até a polícia foi chamada para arrombar a porta
do apartamento onde ele tinha se trancado.
No livro, Rodrigo narra
os horrores da clínica. "Hospício era um lugar cheio de flores lindas, mas
podre por dentro. (...) Todas as vezes, eu desacreditava em Deus. Se havia
um lugar como o hospício, era sinal de que Deus não existia. Ou ele
existia e não queria saber de quem estava dentro daquele pequeno
inferno".
Quando Rodrigo saiu do
"inferno", começou a escrever. "A esquizofrenia o levou para a literatura,
que, por sua vez, o ajudou a conviver com a esquizofrenia", acredita a
irmã. Suzana Vargas, professora de Rodrigo na faculdade de jornalismo e
amiga de todas as horas, concorda. "Ele sempre teve talento. A partir do
primeiro surto, mergulhou na literatura. Foi o modo que encontrou para
conviver com aquilo".
Suzana acredita que, com a publicação do
romance, ele estava encontrando o seu lugar na literatura. "O livro é um
soco no estômago, um material maravilhoso do ponto de vista literário e
também uma maneira de entender o que se passa na cabeça de um
esquizofrênico".
Antes do primeiro surto,
Rodrigo já era um leitor compulsivo. Leu tudo de Marcel Proust. Devorou os
poemas de Charles Baudelaire e os textos de Friedrich Nietzsche. Mas sua
grande paixão era Rimbaud.
O ataque cardíaco que matou Rodrigo
não foi surpresa para a família. Além de esquizofrênico, ele tinha TOC
(Transtorno Obsessivo Compulsivo), era hipertenso, fumante e sedentário.
"Ele nunca fumava só um cigarro por vez. Tinha que ser cinco seguidos",
lembra o pai. Médico, Antonio passou a estudar esquizofrenia. Descobriu
que seu filho era do tipo esquizofrênico paranóico. "Tinha mania de
perseguição e de grandeza. Achava que nós éramos coniventes com os
agentes".
Antonio guarda em casa
os originais de Tripolar,
romance do filho, ainda inédito. "É um bom livro. A esquizofrenia não
alterou a produção intelectual", acredita. Um dos últimos poemas que
Rodrigo postou no blog Lowcura foi "Tudo é pequeno/a fama/a lama/o lince
hipnotizando a iguana. O que é grande/é a arte/Há vida em
Marte".
Foi
Antonio quem recebeu o telefonema avisando que Rodrigo tinha sido
encontrado morto na manhã de 2 de julho. Em Todos os Cachorros São Azuis, o
narrador conta: "Quando o hospício estava cheio, era a hora de ficar
quieto. Qualquer coisa e você poderia ser amarrado à cama. Dentro do
cubículo e amarrado era a
morte".