literAtura e psicologia 

 
 

Aline Drummond

 

 

© cristina carriconde

 

Para Rodrigo de Souza Leão

O que me faz questão, me interessa, me causa é uma certa presença da loucura na literatura e alguns escritores tiveram com a loucura uma proximidade extrema, tais como Hölderlin, Nietzsche, Artaud, Beckett, Virginia Woolf, Joyce, Maura Lopes Cançado, Stela do Patrocínio, Rodrigo de Souza Leão.

“Mas o poeta habita o campo de estalagem da loucura” (Hilda Hilst).

Deleuze fala que os escritores têm uma saúde muito frágil, uma debilidade, uma exaustão, uma certa confusão nervosa, que configuram uma permeabilidade, do que ele chamou de imaturidade necessária ao artista, ao escritor. O escritor, diz Deleuze, é um amante da imaturidade, carrega a inocência dos embriões, a força do inacabamento.

Como diz Deleuze: [o escritor] goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe, contudo, devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis.

Essa fragilidade do escritor não é neurose, nem psicose, mas POROSIDADE AO EXCESSO, ABERTURA E PERMEABILIDADE, aquilo que uma gorda saúde, uma autossuficiência acabada, madura, fechada, concluída, funcionando bem demais, jamais poderia acolher e abrigar.

O escritor é aquele que viu demais, que ouviu demais, que foi atravessado demais pelo que viu e ouviu, que se desfigurou e desfaleceu, por isso, que é grande demais para ele, mas o escritor pode manter-se permeável se permanecer numa condição de inacabamento, imaturidade, imperfeição, fragilidade.

Entretanto, a gorda saúde dominante é incapaz de ver, ouvir e deixar-se atravessar por tanto excesso…

MAS O QUE É A GORDA SAÚDE DOMINANTE?

Será a vida essa gorda saúde de espetáculo, de frisson extasiado diante do sensacional, desse acaparamento do mundo por um estômago fenomenal, que deglute tudo porque expele tudo? Tudo lhes convém, a esses indivíduos com os bons estômagos. A gorda saúde dominante, que devora e expele tudo, e que preserva a própria forma num passeio majestoso no mundo — seja bela e consuma!

Ou, ao contrário, estará a vida mais próxima de uma fragilidade diante do excesso, e também, por conseguinte, de uma certa seletividade? Onde a frágil saúde irresistível, que por não engolir qualquer coisa e não se empanturrar, pode permanecer mais aberta e permeável a muitas coisas e estar sujeita ÀS METAMORFOSES, que advêm dessa relação com o exterior.
O que ocorre a certos doentes é uma tal falta de euforia, uma tal inadaptação às pretensas felicidades da vida, que, para não afundar, são obrigados a ter recursos a ideias inteiramentes novas — inclusive, se reconhecer e se fazer reconhecer como Napoleão ou Deus, o Pai. Eles constroem seus personagens, seus delírios, com os quais se agarram a essa prancha de salvação.

Escrever é uma operação ao alcance de todo mundo, que parece ser tão proveitosa para os fracos, os doentes, os oprimidos e os inadaptados de toda sorte.

MAS AFINAL, O QUE SE INVENTA COM A PEQUENA SAÚDE FRÁGIL? QUE FUNÇÃO DESEMPENHA NISSO A LITERATURA?

Deleuze coloca a questão nos seguintes termos: “Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda a parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem?”.

Nenhuma saúde bastaria para dar conta dessa tarefa de liberar a vida em toda parte onde esteja aprisionada… Viver não é sobreviver, viver não é apenas existir, mas arrancar da existência a vida, onde ela está aprisionada, submetida a uma forma majoritária, a uma gorda saúde dominante. Diante disso, Deleuze, propõe pensar a vida como palpitação, ardência a ser liberada… (“Tudo o que é vida é vulnerável, só o metal é invulnerável”.)
É aí que entra a escrita, pois a ESCRITA FAVORECE. A escrita libera a vida das individualidades estanques, em que ela se vê aprisionada. A literatura favorece outras tantas metamorfoses, saltos, saídas.

Ao escrever, o escritor estaria experimentando saídas, abrindo os becos sem saídas, ABRINDO AS PALAVRAS PARA INTENSIDADES INTERIORES INAUDITAS…

“Há forças no interior do homem que o forçam a espantar-se consigo mesmo” e a literatura consistiria em experimentar essas forças que obrigam o homem a espantar-se consigo mesmo.

 

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

 

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

 

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.

 

Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

 

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

 

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

 

Traduzir uma parte

na outra parte

— que é uma questão

de vida ou morte —

será arte?

 

Ferreira Gullar, "Traduzir", in Na Vertigem do Dia.

 

O eu, ou a consciência, apenas assistem, numa espécie de impotência assustada. POIS ESCREVER É DESERTAR PRECISAMENTE O EU, ESSA FORMA DOMINANTE, hegemônica.

Escrever é liberar a vida por toda parte onde ela esteja aprisionada e ela está aprisionada nas formas constituídas, sobretudo, na forma dominante do eu.

Escrever é uma tentativa de libertar a vida daquilo que a aprisiona, é procurar uma saída, encontrar novas possibilidades.

A literatura e os devires que ela propicia recebem aí uma de suas funções políticas. É toda uma pregnância do modelo de “saúde” que a literatura deserta ao abandonar a forma-homem, ao embarcar em devires minoritários, plurais.

É assim que uma máquina literária entra em conexão com uma máquina política, e as palavras soltam visões e audições, e essas visões e audições ganham amplitude a um só tempo fabuladora e política. Não é a literatura representando o mundo, mas liberando nele, através da linguagem, da escrita, visões e audições que criam realidade.

Ao escrever, o escritor revela algo a respeito do mundo.

"Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo / Que eles veem nos vão dizendo, dizendo / E sendo eles poetas de verdade / Enquanto espiam e piram e piram / Não se cansam de falar / Do que eles juram que não viram" (Milton Nascimento, "Guardanapos de Papel").

Em Todos os Cachorros são Azuis, de Rodrigo de Souza Leão , o personagem central, na sua loucura, acaba denunciando toda uma civilização. “Um dia ainda sobrevivo para mostrar todo esse jogo sujo”. Então, este personagem, que parecia o doente, ou o arrebatado, ou o insano, ou o simplesmente o louco, acaba funcionando como médico, como aquele que pelo extremo, revela a doença da nossa civilização, suas fraquezas, suas covardias, sua palidez, sua mesquinhez … Este personagem — o gordo, tinha a energia necessária para dizer o indizível, para denunciar o horror dos hospícios, o horror dos ditos tratamentos, o horror de uma dominação física e moral sobre a loucura.

Em seu livro-denúncia, tal como Lima Barreto, Rodrigo escreveu:

“[...] No começo da internação às vezes ficamos amarrados. Cada um tem um tratamento que varia de acordo com sua periculosidade [...] Mas o dia inteiro preso, vendo tudo de longe. Era triste [...] Naquele cubículo era sempre inverno. Sempre fazia frio [...] Qualquer coisa e você poderia ser amarrado à cama. Dentro do cubículo e amarrado era a morte [...] Nenhum louco merece aquele tratamento [...] Todo dia eu pedia a Deus que me tirasse dali o mais rápido possível e que o mais rápido fosse o dia seguinte [...] Aqui todos estão sendo levados a algum lugar pior. E o inferno não é o pior dos lugares [...] Havia estado no Carandiru [...] Liberdade, só fora do hospício [...] É como eu me sinto, um ser crucificado. Antigamente, todo mundo que era diferente ou representava algum perigo era crucificado. Hoje em dia fica em lugares como hospício, que é a melhor forma de não melhorar [...] O hospício era um lugar cheio de flores lindas, mas podre por dentro. O modelo hospício tinha que ser mudado. [...]”.

Rodrigo era uma pessoa dotada de lucidez superior, o que lhe permitiu, ver e ouvir mais além, infinita e perigosamente mais além que o real imediato e aparente dos fatos. Quero dizer mais além da consciência que a consciência habitualmente guarda dos fatos. A consciência é seletiva, apaga o que não lhe interessa mas, Rodrigo ultrapassou esse crivo da percepção. Ele não selecionou, não recortou, pois é o murmúrio deste universo psiquiátrico que ele viu e ouviu.

Rodrigo, com sua poesia, com sua escrita, "levando os homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos" (Antonin Artaud).

Essa é a sensibilidade do escritor, a sensibilidade capaz de registrar os desfalecimentos, os acontecimentos por vezes intoleráveis, todo esse rumor.

De agora em diante é impossível não voltar a Rodrigo!

Nietzsche dizia que o artista e o filósofo são médicos da civilização. É nesse sentido que o escritor, para Deleuze, através dessa sua saúde frágil, ao colocar–se à mercê de forças cuja visão e audição o esgotam, em contraposição a uma gorda saúde dominante, o escritor revela a doença da civilização. Esse é um dos sentidos em que podemos afirmar que a Literatura é uma saúde. Ela inventa e acompanha processos e denuncia tudo aquilo que emperra, que aprisiona.

O escritor vê e ouve através das palavras, entre as palavras. De cada escritor é preciso dizer: é um vidente, um ouvidor, “mal visto mal dito” com um objetivo CRÍTICO E CLÍNICO: captar forças, tornar sensíveis forças invisíveis e inaudíveís, e libertar a vida de uma prisão. A Literatura é uma atividade clínica!

“NOS ESCOMBROS DE MIM / FUNDEI MEU MÉDICO / NA POESIA DA RECEITA” (Rodrigo de Souza Leão, "Síndrome de plumas").

O escritor como tal não é doente, mas antes, médico, médico de si mesmo e do mundo. O escritor, ao criar seu procedimento literário e tornar-se capaz de ver e ouvir, age como um diagnosticador. Assim, todo grande escritor é um clínico, um clínico da civilização: alguém que analisa a doença ou os sintomas do homem e do mundo e avalia suas possibilidades de cura. A literatura é uma saúde.   

 

 

Aline Drummond. Psicanalista, professora do curso de graduação em Psicologia da Universidade Veiga de Almeida (UVA) e coordenadora do curso de especialização em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional na mesma instituição. Vive no Rio de Janeiro. Edita o blogue Escritos [http://www.escritospsicologiauva.blogspot.com/]

 

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