A Literatura como fruto da revolta
José Aloise Bahia
Quando
Rodrigo de Souza Leão partiu, rompendo os limites desta vida real e
natural, deixou para trás um vasto legado em poemas, contos, prosas,
músicas, pinturas e entrevistas em mais de décadas de atividades
incessantes de pura criatividade. Todos os cachorros são azuis é um exemplo
fantástico.
O
trabalho realizado pelo autor, exaltado por uma vocação e extraordinária
capacidade vibrante de unir pessoas e personagens, tornou-se referência
para aqueles que entravam em cena no mundo da internet. Nas tecituras da
rede, desenvolveu momentos instigantes de sua carreira. Marcou presença em
portais, sites, blogues, DVDs, plaquetes e consolidou o seu espírito
irrequieto, torcido e libertário, adotando um caminho sem volta. Não se
enquadrou em exageradas panelinhas. Nunca fez questão de atitudes
barganhadoras. Nem precisou de tais expedientes. Sempre foi ele mesmo. O
seu engajamento, ora coletivo, ora pessoal, aos olhos mais atentos, além
do mais, manteve-se pungente no centro das manifestações culturais que
agitaram o ambiente brasileiro nos últimos tempos.
Neste
momento, passado mais de ano do seu falecimento, o mundo assiste cada vez
mais a convergência do real e virtual composto pela tênue cortina entre um
ritmo duvidoso de produção com certo brilho e talento, sob a batuta do
teclado, mouse, monitor, webcam e verbos escassos. Todavia, a questão do ritmo — aspecto pessoal — é o
elemento diferenciador. Enquanto alguns são monopolares, outros bipolares,
o escritor carioca preservou em seus escritos aquilo que alguns chamam de
tripolar. Uma dimensão estética estonteante, que detona todas as
fronteiras da imaginação. Eis a sua marca, tripolar: a literatura como
fruto da revolta. Que despenca de uma enorme e verdejante árvore, fazendo
o galo cantar na cabeça dos leitores. Seja pelo espanto extrapolar ou a
polifonia encarnada na dimensão e imensidão ao longo das
páginas.
A
ficção sui generis, reunião de
narrativas diversas, com certos trechos pendendo para um diário (que
lembra um blogue), de Me roubaram
uns dias contados (Rio de Janeiro: Record, 2010, 336 págs., R$ 47,90),
autoria de Rodrigo de Souza Leão, um dos melhores lançamentos de 2010, são
diálogos internos (várias vozes) sobre a necessidade da cultura-revolta e
da estética como revolta contra a Sociedade do Espetáculo, que enraíza
cada vez mais um número medonho de experiências estagnadas e míopes sobre
o ser, o outro e a própria literatura.
A
pintura A morte do Saci (capa
do exemplar, autoria do autor), rouba a cena. Observem que a qualquer
momento ele (o Saci) pode detonar o Trilite. Trinitrotolueno (TNT) puro
num céu de brigadeiro. Artefato sensível a qualquer movimentação e
trânsito incessante no elenco de personagens contaminadas, prima em
primeiro grau da Nitroglicerina. De coloração amarela, quando explodida
respingam nuvens despontando transparências nos quais alguns erros são
acertos.
No
texto de apresentação Leonardo Gandolfi faz a menção necessária e
inteligente: "Por ter sido sempre descontínuo o espaço entre dentro e fora
do texto, foi radical a sua dedicação, radicalidade que lhe custou caro.
Não quero dizer que ele tenha optado romanticamente por uma mistura entre
texto e vida. Não, não foi isso. Primeiro, porque não houve opção.
Segundo, porque não há como misturar o que nunca antes existiu separado.
Ou seja, o que chamamos de literatura para ele foi uma tática, um modus vivendi. Quanto a isso,
nunca se enganou nem foi enganado. Ao contrário, em seus livros há uma
clareza muitas vezes assombrosa — daí estarmos o tempo todo, em Me roubaram uns dias contados, diante de um mundo
intuitivo, quase inocente, mas ao mesmo tempo muito crítico em relação a
seus próprios mecanismos".
Na
paternidade e cerne do lugar da verdade, convenhamos: ambição e superação
estão no próprio ser e o evento. Curto-circuito fundador da identidade,
autoria, narratibilidade, linguagem e pensamento. Aliás, as articulações
dos desejos entronados — pelo bizarro, o excêntrico, o estranho, o
fabuloso — pelo autor pontuam o livro na ficção criativa e meio de
resistência às tentações do destino. Pelo todo das narrativas observa-se a
"revolta" de Rimbaud e o melhor, relembra Mallarmé: "todo pensamento emite
um lance de dados". Vincula a experiência do ser em relação ao tempo,
expõe os riscos, traços, palavras, tópicos frasais e seminais do acaso
mental/emocional numa linguagem flexível, circulante entre o poético e a
prosa delirante.
Me
roubaram uns dias contados é a dignidade que sistematiza o viés e confrontações, são invenções,
conjugando vários personagens de livros dentro de outros livros — rotações
expansivas. "Um belo mergulho na condição humana, em especial, na dura
tarefa de existir de um escritor, que convive não só com seus fantasmas,
mas também com seus remédios", como observa Ramon Mello, curador de sua
obra. Nesse sentido, suas palavras são indispensáveis para aqueles que
queiram conhecer um pouco mais o universo mágico de Rodrigo de Souza Leão.
Ainda há tempo, pois a metamorfose ambulante supera limites, e aponta
caminhos para nós, pobres mortais, alguma luz que pisca sem cessar no fim
do túnel.
Trechos
do livro
"Devia
haver um céu para quem gosta de Mentex. Outro céu para quem gosta de
Coca-Cola. A lua também tem um céu. Eu e você também. Dizem que existe
Deus, mas eu só acredito no céu. Que nem sempre é azul. Vamos, não se
prenda ao detalhe e olhe nos meus olhos. Não há um céu azul neles. Há uma
eterna conjuntivite, feita de baseado e licor. Meu céu é como o azul de
seus olhos e tem cílios grandes como as caudas de um pavão. O pavão é um
bicho feito de arco-íris. Qual será a cor do céu do planeta dos pavões.
Sim, pois quando estou doidão acho que cada bicho tem seu planeta natal.
Deve ser colorido demais. Existe um céu em Van Gogh, um céu em Bacon, um
céu em Kandinsky. Mas nem em todos tudo é tão azul assim. Porque o azul é
a cor do céu da Terra?". [Livro
Três]
(...)
"Às
vezes tenho vontade de parar de escrever, mas eu continuo porque acho que
gosto das coisas difíceis. Você é difícil. Rodrigo é. Ela é. Eu não. Sou
fácil. Será que é por que eu escrevo? Mas todos neste diário escrevem. Não
é por isso. Sou assim porque quero dar amor. Isso é banal. É fácil como
eu. É uma prova de que sou fácil. Sou diferente. Não me procuro tanto.
Acho. Não sei. Não tenho muitas certezas. Não vejo muito sentido nesta
existência. Acho que fui Hitler na outra encarnação. Devo ter feito muito
mal à humanidade para estar vivendo este carma". [Livro
Dois]
(...)
"Eu
não guardava nada de muito importante no computador, mas não aguentava
ficar sem ele. Chamava-o de Max. Max era temperamental. Era um computador
novo. Trocava de computador todo ano. Todo ano mudava de nome. Era como um
cão fiel. Eu era um usuário pouco precavido. Abria todos os attach. Ficava furioso. Tinha um
comportamento de risco. Eu vivia toda aquela loucura que era o meu dia a
dia sem loucura. Falava ao telefone com quilos e quilos de massa cinzenta.
Muitas sem muita capacidade e sem ter muito que dizer. Às vezes trocava
grunhidos com pessoas e era como voltar ao tempo das cavernas. A minha
vida era uma merda, mas eu gostava dela assim como era. Será que me
entendem? Não sou o tipo de pessoa que faz um puta de um planejamento de
vida. Que sonha alto. Eu tenho parentes ricos e muito ricos que me ajudam
quando as mulas apertam. O que eu gosto mesmo é de um telefone e de uma
sala de bate-papo. Não fossem estes problemas todos que estão acontecendo
comigo, estaria direto na sala de bate-papo. Jogando conversa fora.
Perdendo meu tempo na vida, mas acumulando um outro tipo de energia para a
minha velhice". [Livro
Um]
(...)
"Conta
que ele não gosta do dia trinta e um de dezembro porque seu cachorro azul
sofre muito com os fogos. O cão de pelúcia é um animal. Também não é
adepto do dia vinte e quatro de agosto porque fez um pacto com o demônio e
deve morrer num dia de chuva. Como se ela viesse limpá-lo antes de cair
para Hades ou subir para o céu, ou morrer simplesmente, ou dormir, ou sei
lá o que ele acha que é a morte. O céu deveria ser o que a gente imagina
como céu. Então o céu de Rodrigo seria sem remédios. Sem bombas. Com
cachorros de todas as cores, mas com cães azuis de todas as raças". [Livro Quatro]
[ Publicado originalmente na Germina — Revista de Literatura e Arte, em dezembro/2010; no caderno Pensar do jornal O Estado de Minas, em janeiro/2011; no portal Cronópios, em 2 de julho de 2011 ]
José Aloise
Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor,
pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia
(UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo
Contemporâneo (UNI-BH). Autor de Pavios curtos (Belo
Horizonte: Anomelivros, 2004). Participa da antologia O achamento
de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros,
2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo
Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas
que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria,
2009).
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