fronteira delicada
Paula Cajaty
© cristina
carriconde
A
imagem da capa, em tinta a óleo executada pelo próprio Rodrigo de Souza
Leão na tela A
morte do saci,
exibe a cabeça de alguém sentado, pronta para explodir. A figura e a bomba
são embaladas pelos tons vermelho e carmim, sangue e vida que unifica o
corpo e sua morte iminente numa coisa só. É esta a primeira sensação da
leitura de Me
roubaram uns dias contados.
O raciocínio corre rápido demais ao acompanhar a lucidez frenética e
amalgamada do escritor, e fica a ponto de explodir, de modo que às vezes
torna-se imprescindível fechar um pouco o livro até que a atividade
cerebral se normalize. A leitura do texto em velocidade permite ao leitor
experimentar a sensação e os sintomas da própria esquizofrenia, ao tempo
em que se pode reparar a profunda consciência do autor por conseguir
mostrar exatamente isso ao leitor.
O
livro de estreia de Rodrigo de Souza Leão foi Todos
os cachorros são azuis,
de 2008. Publicado pela 7Letras e premiado pela bolsa Petrobrás, foi
finalista do Prêmio Portugal Telecom 2009, pouco antes da morte de seu
autor. Nesse primeiro livro, podemos ver o rico mundo imagético de
Rodrigo, a mescla de fantasia e realidade, o enfoque único de alguém que
experimentou todas as nuances de uma internação psiquiátrica. Ao tempo em
que promove um resgate da infância proibida aos adultos, conjugando
imaginação prodigiosa a um humor ácido e essencial, Rodrigo leva o leitor
a constatar as atrocidades que foram (e continuam sendo) feitas em nome de
uma suposta “normalidade” padronizante do comportamento social
esperado.
Diferentemente
de sua primeira obra, o segundo livro do autor, publicado post
mortem,
exibe visceralmente o que é o mundo íntimo de um portador de doença
mental. Como Leonardo Gandolfi e o próprio Rodrigo dizem, o livro é sobre
tudo um pouco. O que importa são as sensações que vêm expostas da forma
mais crua, verdadeira, assustadora e incrivelmente detalhada possível, a
ponto de fazer o leitor duvidar da loucura de Rodrigo, a tirar pela
verdade que se esconde no fluxo de consciência da sua narrativa. E ele
mesmo sabe disso: “Sou louco lúcido. Não dá ibope ser
assim”.
Rodrigo
está 20 degraus acima da normalidade, acima da criatividade mediana que se
distribui comedidamente à maioria das pessoas. Aliás, há quem lance mão de
remédios e outras drogas para atingir justamente esse estado alterado da
consciência. Nas suas frases, há algo que remete à narrativa reflexiva de
James Joyce, à solidão absoluta e confronto com o próprio self da
escrita profundamente existencialista de Fiódor Dostoiévski, à loucura que
é viver aprisionado pelos próprios segredos, como Virginia Woolf sabia:
“Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de fora; e pensei o
quanto é pior, talvez, ser trancado no lado de dentro”. Talvez seja isso
mesmo, e Rodrigo seja uma espécie de James Joyce à
brasileira.
Ramon Mello, que assina a orelha do livro, reconhece essa condição de Rodrigo de viver “trancado para dentro”, e organizou sua obra póstuma sobretudo por considerar especialmente esse livro “um belo mergulho na condição humana (…) na dura tarefa de existir de um escritor”. A apresentação de Leonardo Gandolfi traz um recorte biográfico do escritor que notava que sua loucura poderia ser redimida através da literatura, e que sua vida — tão limitada e a ponto de se exaurir — poderia permanecer ali por ainda mais um tempo. Que ninguém se iluda com Rodrigo: um escritor que soube entrevistar outros escritores, organizar revistas, citar clássicos, descobrir talentos, usar o telefone e a internet para fazer amigos, recriar a realidade e sair de casa, algo bem difícil para pessoas com suas limitações.
O
limite da razão
Qual
o limite da razão? Em que medida nossa própria lucidez e loucura se
mesclam? A depressão, as idéias fixas, a coragem de expressar certas
reflexões, o retorno a pontos obsessiva e exaustivamente repetidos, o
humor cortante que permeia o livro, constituem o retrato de um doente, ou
são sintomas exacerbados da própria condição humana? São perguntas que o
leitor não ousaria responder.
Aqui
mergulhamos no velho Rodrigo, o personagem principal; no Sósia, o que
escreve a vida de Rodrigo num livro de 600 páginas; em Weimar, e na sua
vontade de ganhar o prêmio Guinness por falar ao telefone mais do que todo
mundo. Mergulho nos anos 80, na vontade de ter um filho, nas conversas
sempre inesperadas com o porteiro do prédio. Seria tudo isso inventado ou
o autor somente descobriu como usar as armas da literatura com maior
desenvoltura do que os escritores ordinários?
Se
não dá para responder a essas perguntas, muito embora se concorde com
grande parte das histórias, algumas conclusões permanecem depois de se
virar a última página. Que o prato da balança oscila entre os muitos
níveis da razão e pode mudar a qualquer momento com uma mísera poeira que
altere seu equilíbrio. Que, às vezes, para enxergar certas verdades, é
preciso estar 20 andares acima do normal. Que, quando tudo indica que você
deve se matar, isso pode ser um complô maligno contra sua vida e,
justamente por esse motivo, ela merece ser poupada. Que às vezes sentimos
falta de sósias ou outras personas que façam o trabalho sujo por nós,
ainda que isso nos custe algum aborrecimento ou desaforos. E, finalmente,
que a literatura é uma arte fácil para quem sabe que sentar e escrever — intensamente, apaixonadamente,
enlouquecidamente — pode ser talvez a última chance de
manter-se vivo.
[Publicado
originalmente no Jornal
Rascunho]
Paula Cajaty (Rio de Janeiro/RJ, 1975). Poeta, em 2008, lançou o primeiro livro, Afrodite in verso. Em 2010, publicou Sexo, tempo e poesia. Outras informações em seu site [ http://www.paulacajaty.com ].
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