textos da peça todos os

cachorros são azuis — diálogos

com rodrigo

 

 
 

Ramon Mello, Michel Bercovith, Jéssica da Silva David

 

 

[ dedicatória do livro para ramon mello ]

 

 

QUINTA-FEIRA, 15 HORAS

 

Alô, Rodrigo? Finalmente Todos os cachorros são azuis será encenado no teatro, conforme prometi. Fomos contemplados no edital de artes cênicas do Oi Futuro, a estreia está marcada para o dia 9 de julho no Teatro Maria Clara Machado, na Gávea. Acugelê Banzai!

 

Nesses três anos a ideia do projeto se modificou bastante, felizmente. Nada de monólogo. O diretor? Michel Bercovitch. Já te falei dele, lembra? Vocês seriam bons amigos, não tenho dúvida. Quem são os atores? Para representar você, não menos que cinco! Bruna Renha, Camila Rodhi, Gabriel Pardal (ele vai ser papai), Natasha Corbelino e eu, Ramones. Além do próprio romance, utilizamos poemas, cartas, fotografias, gravações e vídeos do seu acervo como matéria-prima da criação. Pois é, eu ia fazer somente a dramaturgia, mas seu texto renovou minha paixão pelo teatro. Faço questão de contar essa história no palco.

 

Divido a adaptação do texto com o Michel e Flávio Pardal, assistente de direção. “Por que todos esses bichos sou eu!” E contamos com a colaboração luxuosa de Manoela Sawitzki durante o passeio em suas palavras. Além disso, Elvira Rocha, Marly Brito, Paula Maracajá, Rafael Rocha, Rui Cortez e Tomas Ribas ajudaram carinhosamente a desenhar o espetáculo. Rimbaud e Baudelaire estão íntimos do grupo, participam de todas as nossas conversas.

 

Agora, liberdade também tem outro sentido: “Mas liberdade mesmo não existe. Estou sempre esbarrando em alguém para ser livre. Se houvesse liberdade o mundo seria uma loucura com todo mundo”. Ler, reler, encenar seu texto me fez ter outra percepção da realidade. Uma experiência difícil, mas enriquecedora. Desejo que a montagem teatral do seu livro possa contribuir para a discussão sobre saúde mental no Brasil. Acugelê Banzai!

 

Meu amigo, você sabe mais do que ninguém, o debate sobre a loucura é científico, social, político e cultural. Você é prova de que, para além dos remédios, a arte é a salvação. Artista, escritor, poeta, ainda que louco. Humano demasiado humano. K d pocua besourfez biologic Todog. Todog morten Todog livus.

 

Todog, irmão.

 

Rio de Janeiro, 07 de julho de 2011.

 

Ramon Mello

 

 

 

 

QUEBRA-CABEÇA

 

A primeira palavra que me vem à cabeça quando tenho que falar de Rodrigo Souza Leão é lucidez. E com a sua lente de aumento voltada para o espelho ele nos presenteia a todos com seus escritos. Entre eles Todos os cachorros são azuis. É o nome do livro. É o nome da peça. “Tudo que é perigoso tem nome”. Ele diz.

 

Esquizofrenia era o seu diagnóstico. Mas Rodrigo não era louco. Era doente mental. E isso é muito diferente. Rodrigo era um poeta. Um escritor. Chamá-lo de louco é dar a ele um nome perigoso. É dar a ele e a tantos outros um destino prematuro.

 

Através da sua experiência acredito que podemos chegar perto de sua sanidade. E contribuir assim para uma discussão mais ampla a respeito da situação da população que sofre com esse destino. Clínica, hospício, manicômio, reclusão, prisão? Reféns de um pesadelo eterno. A peça busca alinhar os fatos do seu relato quando esteve internado depois de uma crise.

 

Rodrigo faz um autodiagnóstico de seu estado e um depoimento contundente sobre o estado das coisas quando fala em doença mental, tratamento, internação, drogas, medicação, família, sexo, solidão e amor. Ele cria um caleidoscópio de memórias, opiniões, citações, imagens, alucinações. Ouçam a memória de Rodrigo. Ouçam Rodrigo ouvindo Rimbaud e às vezes Baudelaire. Um quebra-cabeça. Possível.

 

Uma fábula? Um relato? Um pedido de socorro? Um poema para cinco atores? Memórias de um cárcere? Uma biópsia? Uma viagem da memória? Eu prefiro não dar nome. Porque onde estou todos os cachorros não são azuis.

 

“O mundo é esquizofrênico”. O que quer nos dizer Rodrigo? Que o mundo é doente mental? A arte e a loucura sempre tão próximas, a arte e a mente. Rodrigo encontrou toda sua lucidez a respeito da própria doença através do seu contato com poesia, música, literatura, artes plásticas... Arte. Será que o mundo precisa de mais arte para então encontrar sua cura? Acho que a resposta de Rodrigo é sim. E eu também acredito nisso. Por isso aceitamos o desafio de transpor para o palco Todos os cachorros são azuis e acreditar que isso é importante. “Quero ser promovido à alucinação de alguém”, implora Rodrigo.

 

Melhor: você foi promovido à admiração de alguém.

 

Nos últimos cinco meses tenho ouvido sua voz. Nos próximos meses muitos também vão ouvir.

 

Já somos muitos Souza Leão. Já somos muitos Todog.

 

Michel Bercovitch

 

 

 

 

Todos os cachorros são azuis é um incômodo insolúvel. Incomoda como literatura. Sua construção literária não cabe nem no que se chamaria de "convencional", nem no que se diria "transgressor". É uma obra que se faz pelo todo, mas que também se faz pelas partes [como se cada parte também compusesse um todo]. A história se conduz sem obedecer à dicotomia previsível, porque, já da primeira página, espera-se que tudo possa acontecer. Mas até no inesperado, há deslocamento, há desestabilização.

 

Não se pode, contudo, negar que produza uma experiência estética: é de longe UMA EXPERIÊNCIA, é daquelas que se destacam no fluxo comum da vida. Incomoda como temporalidade. Passado, presente e futuro não existem. O que foi é, e o que é talvez não tenha sido, e o futuro já foi. É uma narrativa autobiográfica com ares de diário, de ficção científica, de fábula. "(...) mas não consegui sobreviver".

 

A narrativa fragmenta o tempo sem compartimentá-lo numa cronologia. Fragmenta o humano sem dividi-lo em caixinhas. Incomoda como loucura. Remarca o desconhecido como usual, e torna o usual desconhecido. Transporta a um lugar que não se controla, que não se conhece, sobre o qual não se pode falar como especialista, com aquele que detém em si todo o saber sobre este lugar. Não parece um mundo errado, anormal: não se trata de uma lógica que é infringida. Parece seguir uma lógica, uma estabilidade interna que me é desconhecida.

 

É um incômodo indefinível.

 

Jéssica da Silva David

 

 

 

Ramon Mello é poeta, jornalista e ator — formado pela Escola Estadual de Teatro Martins Pena. Como repórter entrevistou mais de 120 escritores brasileiros. Organizou Escolhas (Língua Geral, 2009), autobiografia intelectual da professora Heloísa Buarque de Hollanda. Pesquisou e coorganizou Enter, antologia digital (2009). Participou das antologias Como se não houvesse amanhã — 20 contos inspirados em letras da Legião Urbana (Record, 2010), Rio-Haiti, 101 histórias (Garimpo Editorial, 2010), Liberdade até agora (Móbile Editoral, 2011). É autor do livro de poemas Vinis mofados (Língua Geral, 2009) e responsável pela obra do poeta Rodrigo de Souza Leão, falecido em 2009. Mantém o blogue Sorriso do Gato de Alice [http://sorrisodogatodealice.blogspot.com/].

 

Michel Bercovith. Ator, professor de teatro, produtor e diretor. Participou de várias encenações no teatro, cinema e televisão, ganhou muitos prêmios. Em 2010, foi Marcelo Estrada na novela Escrito nas Estrelas. Também dirigiu no SESC Copacabana a peça África, de Vicente Sanchez. A convite de Ramon Mello, assina a direção do espetáculo Todos os cachorros são azuis (adaptação do romance homônimo do poeta Rodrigo de Souza Leão), no Teatro Municipal Maria Clara Machado (Planetário da Gávea). Atualmente, está no ar em Morde & Assopra, novela das sete da Rede Globo, de Walcyr Carrasco.

 

Jéssica da Silva David é bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

 

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