sossega, leão

 

Ronaldo Bressane

 

 

Retrato de Gregor Samsa, RSL

 

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Tudo é pequeno.

 

Tudo é pequeno
A fama
A lama
O lince hipnotizando a iguana

 

O que é grande
É a arte
Há vida em Marte.

 

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Estranho último poema este, postado cinco dias antes da grande viagem. Dia 1 de julho Rodrigo de Souza Leão partiu além. Um poeta estranho pela peculiar mistura de singelo surrealismo, fina ironia e excruciante melancolia — literária, mas confessional à medula —, em versos de fatura lógica e clara, de rimas simples e musicalidade imediata.

 

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Toda a vida em um segundo.

 

Morrendo a cada
Dez minutos uma vez

 

O círculo se fecha
E cada vez mais

 

O que vai indo vai
Pra nunca mais

 

O que fica é o futuro
Uma criança na foto

 

Por que nenhuma
Mãe guardou

 

Nossas fotos
Quando adultos

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O carioca RSL era uma lenda viva. Deixou muita poesia inédita. Um dos escritores mais incansáveis da rede — onde estava desde 1996, editando o e-zine Balacobaco —, multiplicou-se por 10 e-books, artigos literários, entrevistas com autores e participações por vários sites, como a revista Zunái, que editava com o poeta Claudio Daniel. Aqui, Daniel escreve sua comovente despedida do amigo.

 

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Caixa de fósforos.

 

Eu não saio pra ver a vida
Eu vivo ávido de vida


A vida está aqui dentro

Tão dentro que estou morto
Pronto pra pegar fogo

 

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Pulei

de uma janela
deitada

 

Andei
na nata iceberg
do leite

 

Caí
de pára-quedas
no nada

 

Subi
cavando
com enxada

 

.

 

Foices
ceifando
o sol

 

naus
ornando
o mar

 

peristilos
lambem
pilastras

 

aprendi
arquitetura
Proust

 

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Bandeira vermelha.

 

O sono eterno da pedra
as falésias surfando
o mar de cicatrizes

 

à cata está o poeta
de alguma imagem rara
ou de alguma metáfora nua

 

na ressaca da prudência
alguns ficam nas pranchas
carrancas com medo

 

castelos de areia
crianças à milanesa
o céu maior que tudo

 

e à maneira do sol
espero o mar crescer
se encher de sudoeste

 

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Além da incessante produção — que culminou na elogiada novela Todos os cachorros são azuis, no Prêmio Portugal Telecom —, os últimos anos de Leão foram preenchidos por telas de cores primárias e forte iconicidade, como A insustentável leveza do elefante e esta:

 

 

Sentido da vida, RSL

 

 

RSL era uma lenda também por falar sem medo [e sem esperança] da condição de esquizofrênico — que o mantinha recolhido em casa, de onde saía muito pouco: sua última aparição pública foi no projeto Artimanhas Poéticas, no início de junho. Neste depoimento ao Jornal do Brasil, Leão pede inteligência no trato com os loucos e critica a forma ridícula como o tema é abordado na infame novela Caminho das Índias.

 

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Química cerebral.

 

Bom dia Lexotan
Bom dia Prozac
Bom dia Diazepam
Bom dia coquetel
Bom dia Amplictil
Bom dia Fenergan
Bom dia sossega-leão
Bom dia eletrochoque
Bom dia Piportil
Bom dia Lorax
Bom dia Lithium
Bom dia Haldol

Boa noite Rodrigo

 

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A experiência na esquizofrenia, que o levou à internação em manicômio [tema de Todos os cachorros são azuis], e a luta por destrinchar os eventos criados pelo inconstante convívio entre a 'normalidade' social e a realidade de uma mente em parafuso relacionam o poeta em uma linhagem rara na literatura brasileira.

 

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Linguagem.

 

O louco baba um licor de excrescências
O louco faz excrescências
entre o que baba e o que faz

 

Esta é a linguagem do louco
Ele está no que baba
Na excrescência que ali jaz

 

O louco não rasga dinheiro
Compra cigarros bem fortes
para que possam matá-los

 

Antes que a morte lhe mate.

 

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Lobotomia.

 

Na
Caixa
Craniana
Não há nada

 

Só o nada como artefato

 

Nada
Um peixe
E suas barbatanas

 

Homens dão viradas olímpicas
Nadam
E o nada continua ali

 

Vazio
Entre duas mãos
E o bisturi

 

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Vida.

 

A mim foi negado tudo.
Até o absurdo.

 

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O cânone desta escrita de autobiográfica investigação psiquiátrica alinha do Lima Barreto de O cemitério dos vivos à Maura Lopes Cançado de Hospício é Deus, passando pelo Renato Pompeu de Quatro-olhos, o Carlos Süssekind de Armadilha para Lamartine, a Orides Fontela de Teia e o Lourenço Mutarelli de A arte de produzir efeito sem causa. Literaturas desalinhadas na crítica acadêmica, que ainda nos deve um estudo sério sobre a intersecção arte-loucura-biografia na literatura brasileira.

 

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O dado de sete lados.

 

Psiquiatras vêem doença em tudo.
No azul do veludo
de uma neurose:

 

numa operação de fimose.

 

Por osmose
(numa réplica de crocodilo)

 

vêem o Murilo.
Mendes é o nome dele.

 

Vêem a Paranóia (de Piva)
e os sete cantos de um dado imaginário.

 

Podem me chamar de otário:
no sentido horário

 

e no anti-horário.

 

Podem cristalizar o Tempo
e catar o vento:

 

botar a pica pra subir numa aranha
cremosa:

 

só porque as tarântulas são negras
como o véu da viúva: que Ivo viu

 

a uva.

 

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Conforme o amigo Daniel, Leão se foi "de ataque cardíaco, provocado por medicação excessiva; não sabemos se foi suicídio, imperícia médica ou destino. Sugiro que você publique algo sobre a literatura do Rodrigo; ele ficaria mais feliz se falassem de seus livros do que do seu drama pessoal". De acordo, embora em desacordo com sua morte — que silenciou de forma abrupta nossa nascente conversa. Mas seus poemas estão aqui. Lindamente vivos.

 

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lápide sem inscrição
já feita

 

já feita a luzificação
da alma eleita

 

trâmites e processos do sol
no dia d

 

flechas e cartas de amor
fagulhando hou-

 

sebad
e que me marcou só sei eu

 

que pleiteio um fim
também

 

muito afim de mim

 

Rodrigo de Souza Leão, 1965-2009

 

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mobiliando o silêncio
com aquários vazios

 

vê-se inexistente
uma cor na parede

 

o que se vê
é um pássaro com sede

 

de poleiro em poleiro
fazendo voar a gaiola

 

 

 

 

05 / julho / 2009

 

 

Ronaldo Bressane (São Paulo-SP, 1970). Escritor, jornalista e editor. Publicou a trilogia de contos A Outra Comédia, formada por Os infernos possíveis (Com-Arte/USP, 1999), 10 presídios de bolso (Altana, 2001) e Céu de Lúcifer (Azougue, 2003), além dos volumes de poemas O Impostor (Ciência do Acidente, 2002) e Cada vez que ella dice X (Yiyi Jambo, 2008). Ao lado de Joca Reiners Terron, Marcelino Freire e Nelson de Oliveira, co-editou a coleção Risco:Ruído (DBA, 2005), que publicou Lourenço Mutarelli, Daniel Pellizzari e Paulo Leminski, entre outros. Foi pioneiro na divulgação da literatura brasileira na rede ao editar, entre 1998 e 2000, a Revista A, em que pela primeira vez foram publicados nomes como Emilio Fraia e Jorge Cardoso. Além de colaborações em sites e suplementos literários, participou da revista PS:SP (Ateliê, 2003) e das antologias Geração 90: Os transgressores (Boitempo, 2003), Paixão por São Paulo (Terceiro Nome, 2004), Fábulas da Mercearia — Uma antologia bêbada (Ciência do Acidente, 2004), além das seletas italianas Sex'n'Bossa (Mondadori, 2005), Lusofonia (Nuova Frontiera, 2006) e Il Brasile per le strade (Azimut, 2009) e da reunião hispânica 90-00: Cuentos brasileños contemporáneos (Ediciones Copé/Petroperu, 2009). Edita o blogue Impostor.

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