matéria de salvação 

 

 
 

 

Marcelo Moutinho

 

 

 

 

“Eu sou esquizofrênico”, avisa o narrador de O esquizoide coração na boca logo na primeira frase do livro. Estabelecendo uma analogia com a condição do próprio autor, a confidência serve como ponto de contato inicial com os dois romances anteriores de Rodrigo de Souza Leão. Outros virão ao longo das 77 páginas da nova obra.

 

Assim como em Todos os cachorros são azuis e em Me roubaram uns dias contados, há a experiência da internação no hospício, a denúncia do tratamento nos manicômios, o trauma pelo corpo obeso, delírios persecutórios, alusões a medicamentos. A CIA e a KGB são mais uma vez mencionadas, e repetem-se as citações de escritores, bandas de rock, filmes e livros. O estilo de Rodrigo igualmente se confirma: orações curtas, das quais brotam pensatas, aforismos, alumbramentos, humor, lirismo e alguma violência.

 

É uma caligrafia singular, que, como destaca Silvana Guimarães na apresentação, “amontoa delírio e lucidez, melancolia e resistência, solidão e solidão”. Mas há dois elementos que distinguem o novo romance. Ao contrário dos trabalhos precedentes, em O esquizoide Rodrigo abdica de transformar autores do cânone, como Baudelaire, Rimbaud ou Kafka, em personagens. Além disso, a história é contada de modo linear, com um enredo quase à moda clássica.

 

Tudo começa quando o protagonista revela que “um japonês”, com a ajuda de uma zarabatana, inoculou uma bomba em seu corpo. Bomba que, teme ele, pode ser detonada a qualquer momento. Essa alucinação, tratada como acontecimento plausível, deflagra uma paranoia: a sensação de estar permanentemente acossado, de ser vítima de um complô que inclui os colegas de empresa e até mesmo parentes próximos.

 

Entre muitas fantasias e poucas certezas, o narrador passa a expor a rotina de um esquizofrênico. Relata, em primeira pessoa, os dias de internação, as crises, a relação com a família, o amor correspondido por Carina, sua enfermeira, com quem acaba tendo um filho. Exprime as dores mais íntimas, aquecidas pela sensação de desajuste. “Ser esquizofrênico é acordar no escuro tudo estando claro”, compara.

 

A biografia de Rodrigo e o tom confessional da escrita — patente também em seus outros livros estreitam os laços entre vida e obra, fazendo-os praticamente indissociáveis. O novo romance, porém, tem menos voltagem poética. O caldo denso que escorria das palavras, sobretudo no ótimo Todos os cachorros são azuis, tornou-se rarefeito.

 

Isso porque a potência do livro de estreia vinha justamente do fluxo impetuoso que carregava, na mesma corredeira, consciência e ilusão. Sem fronteiras rígidas. Apostando na fragmentação e transcendendo gêneros, Rodrigo espelhava a tensão entre loucura e lucidez de maneira menos, digamos, “organizada”. Em O esquizóide, o enredo parece convertido em armadura.

 

Pequenos deslizes, como a presença de cacófatos (“havia dado”) e a utilização de expressões gastas “o pão que o diabo amassou”, por exemplo, aparece duas vezes , sugerem também que o texto talvez ainda viesse a ser burilado pelo autor, caso a morte não o tivesse levado precocemente. Como ele, aliás, previa.

 

“A vida é só um segundo. Um aflito segundo para um esquizofrênico como eu”, comenta, em O esquizoide. E Rodrigo fez muito em tão breve tempo. Com seus três livros, inscreveu-se em uma tradição da qual fazem parte Lima Barreto, Maura Lopes Cançado e Stella do Patrocínio, entre outros autores, só para ficarmos em âmbito brasileiro. Com sua arte, tentou “derreter o gelo que às vezes forma geleiras e icebergs na alma”, atenuando as aflições que a esquizofrenia lhe impôs.

 

Em determinada passagem, quando inventaria os inconvenientes do hospício, o narrador do novo romance reclama do alarido promovido pelos internos. E, então, salienta: “Há um desespero na loucura que me parece incontrolável e o berro talvez seja como dizer ‘eu ainda existo e existe vida em mim’”. A literatura foi, para Rodrigo, esse grito: matéria de salvação.

 

[Publicado originalmente no Segundo Caderno de O Globo, em 02 de julho de 2011]

 

 

 

 

 

Marcelo Moutinho é escritor e jornalista. Escreve em seu site [ http://www.marcelomoutinho.com.br ].

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