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Silvana Guimarães

 

 

 

 

De novo, um livro de Rodrigo de Souza Leão: O Esquizoide, escrito em ritmo de urgência e dor, em 2003. De novo, a caligrafia peculiar, que amontoa delírio e lucidez, melancolia e resistência, solidão e solidão. Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, como sempre, uma narrativa que vacila entre um diário, romance, novela, depoimento, uma fábula. Parábola?

De novíssimo, a opção do autor pela história anunciada tintim por tintim — ele, que  desprezava os enredos — com princípio, meio e [não vou rimar] três personagens principais: o escritor, um homem e seu contrário: um Narciso que acha feio o espelho.

Cabe-nos decifrá-los, em leitura de poucas horas e muito estranhamento. Menos preocupados, sugiro, em descobrir quem dos três fala a verdade — aliás, a quem interessa a verdade?, qual delas? — e mais atentos à sua linguagem surpreendentemente simples e leve, a despeito de todo o peso que carrega. Feita de cortes atordoados, que se emendam para reiventar a única vida possível, atravessada na corda bamba, entre a realidade e o desvario. Eu disse "dor" lá em cima. O Esquizoide é uma armadilha sabiamente engendrada por quem entende de jaulas. Onde a loucura é, de propósito, manifestada em primeiro plano, a pedra fundamental no caminho de Rodrigo de Souza Leão. Ou o raio de uma bomba.

Escrevo enquanto choro.

Sou esquizofrênico, mas não sou esquizofrênico, afirma o escritor, em nome do homem e seu contrário, para fundamentar a própria condição humana. E provar que para o homem não houve saída [quem dera a vida imitasse a arte!]. À medida que dribla o leitor com uma vasta coleção de pistas verdadeiras e falsas, entremeadas por certos aforismos que saltam do texto e soam como o pensamento dele enunciado em voz alta, chamando-nos à razão. Sim, à razão, quero repetir. Com certeza, um relato autobiográfico. Sem dúvida, absolutamente ficcional. De quem desistiu da realidade em nome da vida — embora isso possa parecer tão contraditório — e não se conformou com o caos, fez dele sua matéria-prima. Alguém que usou o poder divino conferido a todo escritor para envolver o contrário do homem em uma paixão amorosa de consequências sinistras, denunciando que o gênio da tragédia é o mesmo da comédia.

Por isso, um livro dolorido e doloroso. Escrito às pressas, como uma explicação, a ser lida 30 anos depois, para o que deveria ter sido se. Ou o que poderia ter sido se. Se não houvesse o se.

Se eu morrer você publica?

Você está pensando em morrer?

Não agora. Mas quando eu morrer você promete que publica esse livro?

Prometo. Em 2019, então.

O compromisso foi acertado entre gargalhadas. Cúmplices.

Esse diálogo aconteceu em 2003, seis anos antes da derradeira morte de Rodrigo — a definitiva — que ele havia previsto para 2015, em torno dos 50 anos de idade. Outras vezes, conversamos sobre o assunto — muitas, em junho de 2009. Em 2 de julho ele se foi, aos 44. [Não errou nos cálculos. É que lhe roubaram uns dias contados]. Falávamos ao telefone, uma rotina diária, que durou mais de uma década e me revelou muito mais que o amigo univitelino: um homem delicadamente lógico, inteligente, bem-humorado, crítico contumaz de si-mesmo. Um ser humano que se confessava feliz e amado pela família e amigos. A quem retribuía com superdoses de ternura e generosidade. A mesma que o motivava a se expor inteiro e desarmado, e lutar pela humanização do tratamento psiquiátrico. Sem abusar da condição de vítima — que aceitou apenas no plano físico — atravessando abismos, desmontando limites: era um nunca-acabar de criatividade. Talento multifacetado, que existiu somente a favor da arte. Indiscutivelmente, primeiro de tudo, em ordem de grandeza: poeta. E ficcionista, músico, pintor, jornalista. Lenda viva, disseram.

Boa noite, Silvana.

Uma palavra só era a deixa. Rimos muito, juntos, por mais de dez anos.

A morte, que ele aceitava como um acontecimento natural, não lhe causava medo. Era tratada como o ponto final [o The End congênito, ele dizia]. Nunca como libertação ou castigo. Sempre restaria a possibilidade de passar desta para maior, enfim. Obviedade em demasia para quem não acreditava em finais felizes, apenas suportáveis.

"Peço que duvidem de mim", diz o escritor no começo dessa história.

Eu nunca duvidei.

Ave, Rodrigo.

 

 

 

Silvana Guimarães (Belo Horizonte/MG). Foi pianista, socióloga, especialista em transporte público. Agora escreve. Pura vingança. Tem contos e poemas publicados em revistas nacionais e estrangeiras. É uma das 8 Femmespoesia (São Paulo: Papel de Rascunho, 2007). Está nas coletâneas Pitangamicrocontos (Lisboa: Pitanga, 2008), Amar é abanar o rabo, poesia, de Jovino Machado (Belo Horizonte: Excelente, 2009) e Dedo de moça — uma antologia das escritoras suicidas, poesia e ficção (São Paulo: Terracota, 2009), que organizou com Florbela de Itamambuca. Coeditora da Germina — Revista de Literatura e Arte, Escritoras Suicidas e do site de Rodrigo de Souza Leão.

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