todos os cachorros são azuis

 
 

Amador Ribeiro Neto

 

 

O que é que você faz quando lê um livro, gosta imensamente dele, mas de tanta satisfação fica atordoado como o personagem principal? É o que me aconteceu depois de ler Todos os cachorros são azuis, de Rodrigo Souza Leão, editora 7Letras.

O livro não tem pé nem cabeça. E faz questão de não ter. Se você forçar a barra vai encontrar um fio mirrado de narrativa. Mas só se forçar a barra. Se se deixar levar pelo ritmo das palavras, pouco se importando com que diabos de gênero literário ele parece, vai ficar em dúvida. Ensaio? Poesia? Conto? Romance? Teatro? Roteiro cinematográfico? Rascunho? Diário? Diário de um louco? Tributo a Nietzsche? Ao José Mojica Martins? A Artur Bispo do Rosário?

Não se meta a engraçadinho querendo botar ordem no hospício das palavras esplendidamente encadeadas na estreia do poeta RSL como prosador. Prosador? Bem, é o que diz a orelha do livro. Mas, tal como os loucos, pouco ouvido devemos dar a palpites que vêm de estruturas viciadas/vigiadas. O caminho entre uma coisa e outra (seja esta coisa qualquer coisa e a outra idem) é vicinal. Como no interior do país. Como nas marginais das metrópoles.

Van Gogh cortou a orelha. O personagem principal desta geringonça de palavras não cortou nada além da lógica, da ilógica, da analógica. Deixa o leitor assim: com cara de quem tomou Haldol. E viajou. E viaja. E está aqui e agora. De repente escapa. Encontra Baudelaire, geralmente de mau humor. Cruza com Rimbaud, este mais desencanado. A modernidade dá as caras e mostra seu preço. Todog pode ser o salvador. O caminho. A saída do supermercado de sabão e cebola.

Sim: tem família no meio. Pai e mãe e irmãos. Claro: como um louco existiria sem família e sem hospício? Faz parte da cena real, irreal. É do roteiro. Do desnorteio.

O grande gancho está no fato de este texto tomar o leitor como comparsa numa levada de contrabando. Não diria um sequestro, pois o leitor é levado porque consente. Poderia desistir na primeira página se quisesse. Mas ele não quer. Ou não consegue. O que dá no mesmo. E assim o livro vira a morada do ser-leitor.

Os cachorros azuis do título do livro não passam de um cachorro de pelúcia, inútil como todo bicho... de pelúcia. O narrador manda o leitor lamber sabão. Ou cortar cebola. Entendeu, hipócrita leitor, meu espectador da MTV. Meu igual, meu irmão de Arrigo Barnabé. Clara Crocodilo escapuliu. Em tempo: a Terra é azul.

 

 

[Publicado originalmente no jornal A União, Paraíba, de 25/11/2008, Caderno de Cultura, p. 20]

 

 

 

Amador Ribeiro Neto. Poeta, crítico literário, professor de Teoria da Poesia e Literatura Comparada na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre pela USP e Doutor pela PUC-SP. Autor de Barrocidade (poesia, Landy Editora), organizador e coautor de Literatura na Universidade (ensaios, Idéia Editora).

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