me roubaram uns dias contados

 

 

 

 

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ESCREVER É FALAR SEM SER INTERROMPIDO

 

SUZANA VARGAS

 

Leio emocionada Me roubaram os dias contados, último livro escrito por Rodrigo Souza Leão, um misto de romance, diário autobiográfico ou colagem de contos interdependentes em que um personagem escritor-narrador se aventura na floresta de sua psique, extraindo matéria-prima para sua ficção. Poderíamos dizer que pertence a uma certa linhagem da prosa brasileira contemporânea essa mistura de gêneros, se o texto de Rodrigo não levasse essas tendências ao limite de um desafio.

 

São 335 páginas de um quase tratado ficcional de uma não ficção no sentido mais literário do termo. Personagens, não personagens, episódios múltiplos aparecem e somem através do alter ego do autor, que reflete sobre sua criação e criaturas, sobre seu mundo interno e externo. O que vai surgindo aos poucos e fantasticamente é nosso mundo, tão pleno de ausência de sentido quanto real. TVs, canais especiais, telefones, sexofones, internet e os mais velozes meios de comunicação fazem parte desse cotidiano pleno de palavras sem que uma só — a essencial — seja pronunciada. Extremamente solitários, os personagens (e seu criador) estão imersos no desamor e nas receitas de felicidade alardeadas pela propaganda a que Weimar (o protagonista) e seus dez aparelhos de telefone têm acesso do fundo de seu confinamento.

 

Súmula de suas referências culturais, o autor — morto em 2009 — vale-se de sua conturbada biografia para esta recriação. O que deseja é gritar contra a falta de sentido dos limites que nos autoimpomos no campo existencial e literário. Deste ponto de vista, somem as fronteiras entre os gêneros, e conceitos como eternidade, sexo, amizade, amor caem por terra através de um rigoroso e desesperado autoexame.

 

O livro estrutura-se em quatro partes. Em todas, os personagens estão permeados pela mesma síndrome: o pavor de um contato mais profundo com eles mesmos. Essa relação se radicaliza no segundo capítulo, onde surge o próprio Rodrigo em feroz depoimento. Sem autocomplacência, não poupa nada nem ninguém. Impossível ficar de fora: com quantos medos se faz uma síndrome do pânico? É o que nos pergunta a certa altura. Segundo ele, ou Kafka, ou Weimar, ou quem quer que lhe tenha soprado essas palavras: "Vamos envelhecer e morrer. Isso já não basta. Quem quer viver para sempre é um idiota. O que nos faz melhores é o fato de não sermos mortais? O que é a imortalidade? A repetição. O eterno retorno. O circular filosófico. Não estamos de passagem. Estamos e só. O que quero conseguir quero em vida".

 

Acompanhado de interlocutores como Platão, Schopenhauer, Machado ou Proust, Rodrigo dialoga a partir de sua doença com nosso mundo doente e mágico onde "O segredo é não fazer exame para ter saúde". Livro implacável e belo que reflete a um só tempo a crise da narrativa humana afirmando a necessidade inadiável da poesia e da escrita. A escrita enquanto manifestação profunda de procriar e continuar. Como nos fala ainda seu autor: "Escrever é uma forma de falar sem ser interrompido". Eis.

 

 

[Publicado originalmente no blogue do Arnaldo Bloch]

 

 

Suzana Vargas é escritora. Clique aqui e aqui para saber mais.

 

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