um pedaço do caos de rodrigo de souza leão*
Zema Ribeiro
Indicado
ao prêmio Portugal Telecom 2009 por sua novela Todos os cachorros são
azuis, se o carioca Rodrigo de Souza Leão for um dos vencedores, o
título já será póstumo, infelizmente. Subiu,
no último dia 1º de julho o poeta Rodrigo de Souza Leão, vítima de ataque
cardíaco provocado por doses excessivas de medicação. No entanto, não
gostaria de transmutar esta humilde resenha em obituário ou coisa que o
valha. O carioca, nascido em 1965, publicou, ano passado, um dos melhores
livros que li — o que já está se tornando clichê dizer, embora seja a mais
absoluta verdade, sem essa de “poeta bom = poeta morto” — a novela
Todos os cachorros são azuis [7Letras, 2008, 78 páginas, R$
25,00], finalista do prêmio Portugal Telecom este
ano. Rodrigo
estica uma corda bamba por sobre e atravessa um perigoso vão onde se
incluem autobiografia, linguagem inovadora, estreia — escreveu a novela,
mas era, antes de tudo, poeta, embora não seja meu papel rotulá-lo ou
coisa parecida — e coragem. De se despir, inclusive: Todos os
cachorros são azuis é autobiográfico e trata, sem medos ou fugas, da
experiência do poeta em internações em clínicas psiquiátricas por conta da
esquizofrenia. E isso não é dado de bandeja ao
leitor. O
protagonista narrador da primeira obra em prosa do carioca vive entre
alucinações e tem como companhias um Rimbaud e um Baudelaire frutos de sua
imaginação — como bom escritor, Rodrigo era, antes, um grande leitor —,
entre outras figuras que circulam pelo hospício, mas “soa” bastante lúcido
em determinadas passagens: “Todo dia antes de dormir eu rezava a
ave-maria. Todo o dia eu pedia a Deus que me tirasse dali o mais rápido
possível e que o mais rápido possível fosse o dia seguinte. Depois eu não
acreditava nem em Deus e nem na Ave Maria, mas eu rezava. Não custava nada
rezar. Não pagava nada para pedir. Algum cristão, num dia de domingo,
aparecia bem perto da minha cela e deixava um folhetinho. Eu olhava e lia
quando as doses não eram altas e me deixavam ler, depois rasgava o papel.
Meu Deus! Os crentes estão ganhando o mundo. Até aqui eles vinham para
angariar os fodidos. A religião virou uma sacanagem do caralho. Acho que
sabiam que havia muitos alcoólatras lá dentro. A religião não é só o ópio
do povo. Mas é o que mantém o povo feliz. Triste do povo que precisa da
religião para se apoiar. É pior do que um louco que tem cura, mas
precisará sempre de um apoio de outra pessoa para ser feliz. É melhor ser
louco incurável” (página 23). Rodrigo
de Souza Leão era um dos escritores de internet brasileiros com mais
experiência: editava desde 1996 — quando a web brasileira ainda
engatinhava — o e-zine Balacobaco, enviado por e-mail a interessados (este
colunista incluso), e escrevia constante e sofregamente no blogue Lowcura. Outra
passagem da novela: “Não beijei a primeira garota que amei. Fui beijar
outra menina pra aprender e só depois beijar de um modo melhor a que eu
amava. A que eu amava viu e me deu o pé na bunda” (página
44). “Rodrigo
foi um poeta visceral; ele não buscava apenas soluções estéticas. A
criação, para ele, era uma forma de iluminar o próprio caos. Ele escrevia
com as entranhas. Poesia confessional? Sim. Apesar disso, deixou obras
notáveis, como a novela Todos os cachorros são azuis e o livro de
poemas O caga-regras”, escreveu sobre ele o poeta, tradutor,
ensaísta e editor Claudio
Daniel, um dos maiores conhecedores da matéria no Brasil, em
texto
publicado no site Cronópios. “Cada
gol é uma medalha no peito. O general tem muitas medalhas e nenhuma
guerra. Em São Paulo, certa vez, uma mulher-super-poderosa disse que eu
tinha sido soldado em outra encarnação. Muitas guerras a serem vencidas.
Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones. Vietnã. Na
veia. Helicópteros por todo o lado. Napalm. Gás mostarda. Baionetas
enfiadas nos corpos. Injetando alguma química feroz” (página 65). Ganhando
ou não, postumamente, o Portugal Telecom, Rodrigo de Souza Leão já tem seu
lugar garantido na galeria do que há de melhor na literatura brasileira
produzida neste início de século. * O título da coluna de hoje (no Tribuna do Nordeste), faz alusão ao autógrafo no livro que o Rodrigo me mandou: "Ao Zema Ribeiro, um pedaço do meu caos. O abraço amigo do Rodrigo. 27.11.08". [Publicado
originalmente na coluna "Tribuna Cultural", do Jornal Tribuna do
Nordeste, São Luís, Maranhão, em 12 de julho de 2009]
Zema Ribeiro é jornalista. Escreve o blogue http://zemaribeiro.blogspot.com. |
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