o céu está morto Victor da
Rosa
O
olho que narra é azul e vê tudo a seu modo — na falta de nome, quase nada,
água: todas as coisas azuis. Desaparece a distância que antes separava o
olho e as coisas: azul. A voz assim desaparece nas coisas. O céu está
morto. Certa
distorção cromática nomeia de início a primeira novela do escritor Rodrigo
de Souza Leão: Todos os cachorros
são azuis (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, 78 págs.) — e talvez reflita
de início a imagem que atravessa toda a narrativa: um cachorro azul, de
pelúcia, objeto afetivo de infância, que retorna em vários momentos do
livro, quase sempre como uma falta, mas se derrama também para a
imaginação de um cenário deformado e delirante. "Eu não tinha culpa de ver
a luz das coisas", diz o narrador. Em linhas gerais: trata-se de um
sujeito que narra sua experiência em um hospício — e, segundo as palavras
de Sérgio Medeiros, que assina a orelha do livro, estamos diante de uma
experiência autobiográfica. Parece
haver durante todo o livro uma variação narrativa entre o delírio mesmo e
instantes de lucidez, se aceitamos esta dicotomia — e o comovente (ainda
devemos pensar esta palavra em sua literalidade: como aquilo que move
junto, arranca o leitor de seu lugar) é que isto não nos é representado,
mimetizado por uma voz que acompanha todo o acontecimento em sua
distância, e sim narrado pelo corpo mesmo no interior da experiência. Há
um sujeito implicado em tudo. Desta maneira, a escrita abandona sua função
de entendimento e passa a se constituir enquanto marca na página: cisão.
Em outras palavras: a prosa de Rodrigo talvez não aconteça na
continuidade, ou no retorno — características fundamentais da prosa — mas
principalmente no corte. Ao
mesmo tempo — e isto deve se constituir também enquanto corte na escrita —
penso que esta narrativa de Rodrigo se lança com extrema precisão. Se, por
um lado, há o excesso de tudo atravessando experiência e escrita, por
outro lado há um delicado esforço (mas não evidente) de contenção — ou
seja: de ter dentro — daquilo que se oferece enquanto queda absoluta, como
nesta imagem: "O sol era um sorvete de manga". Penso então na imagem da fluência
— que traz um primeiro sentido de algo fluido e ao mesmo tempo a idéia de
certa clareza. O esforço talvez seja o de esculpir a
água. A
retina que narra é corte: azul, nada. O olho que narra é lâmina. A
literatura de Rodrigo é então um vidro sobreposto de imagens: "Minha vida
no mundo das cores era um inferno". O
azul é uma cor fundamental para a literatura de Mallarmé: o céu está
morto. Ainda nas palavras de Sérgio Medeiros, em um ensaio que escreve
sobre o poeta francês, o azul é o alto — é o intocável, portanto. "L'Azur!
l'Azur! l'Azur! l'Azur!", repete Mallarmé sem que o céu se abra,
enfrentando a impossibilidade em um ato de loucura. É curioso que nesta
narrativa de Rodrigo, por outro lado, o azul apareça em um objeto
habitual, afetivo: um pequeno cão de pelúcia. Ao mesmo tempo, trata-se de
um objeto que permanece perdido durante todo o tempo, ausente, já que o
hospício é essencialmente o espaço da falta: falta da razão, de memória,
falta de nome: azul. "Meu cachorro azul não tinha nome. Nada que eu gosto
tem nome. Tudo que é perigoso tem nome", diz o narrador. E ainda: "Tudo
que eu tenho é o meu cachorro azul". Viver
durante anos em um hospício é, de fato, viver com fantasmas. A memória —
recorrente em curtos cortes cinematográficos — talvez seja a única
possibilidade de permanência. Se o céu está morto, a imagem passa a ser a
do cemitério: ou o inferno de Rimbaud. Como ainda sugere Sérgio Medeiros
em seu texto de apresentação: "o hospício é a modernidade 'louca' (...)".
Em muitas de suas alucinações, o narrador dialoga mesmo com Rimbaud e,
algumas vezes, também com Baudelaire. No meio destes diálogos, no entorno
do cenário, a cultura de massa invade estas alucinações: "Dança da
motinha. Dança da motinha. Eu engoli um grilo quando tinha meus 15 anos de
idade. Foi a primeira vez que consegui conviver comigo mais intensamente".
Seus personagens não são retratados, mas traçados — são
fantasmas. Todas
as culturas convivem na mesma interioridade, em uma sobreposição
enunciativa interminável. E ainda: vozes de diferentes lugares e tempos
são confrontadas no mesmo nível de discurso. Na primeira página do livro,
por exemplo, o primeiro contato: "Engoli um chip ontem. Danei-me a falar
sobre o sistema que me cerca. Havia um eletrodo em minha testa, não sei se
engoli o eletrodo também junto com o chip. Os cavalos estavam galopando.
Menos o cavalo-marinho que nadava no aquário", diz o narrador, no primeiro
parágrafo do livro — para depois, logo em seguida, afirmar em terceira
pessoa: "Ele continua achando que engoliu um chip", como se então a voz
fosse a mesma, em uma anulação absoluta da fronteira entre quem diz e
ouve. Este
corpo narrativo está assim atravessado por diferentes vozes, espaços,
tempos: ainda, cortes. Em outras palavras: permanece em constante contato
com o entorno — embora seja visível, por outro lado, certa solidão. Não há
diferença: todos os cachorros são azuis. Há um modo de apreender que não
está ligado ao chão. "Por
delicadeza, perdi minha vida", ainda diz o narrador. A literatura é uma
saúde. E a escrita então é talvez a única possibilidade de um testemunho
que resta depois da catástrofe — depois de tudo. Deste modo, entramos
também em contato — e é como se pudéssemos pôr as mãos, mesmo que de modo
opaco — com todo o contexto do hospício, a dificuldade: "Eu começava a
desconfiar de minha sombra". E o que mais toca, assim, é perceber que
todos, de algum modo, estamos implicados nesta surpreendente narrativa de
Rodrigo — como nos repete o título, aliás, sempre que fechamos o livro:
todos os cachorros — sem exceção — são
azuis. outubro / 2008 Victor da Rosa. Ensaísta e
mestrando em Literatura pela UFSC, é autor de Piano e flauta —
fragmentos de um romance (São Paulo, Lumme Editor, 2007).
Colaborador do Centopéia,
escreve o blogue Notícias de Três Linhas. |
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