romina Conti

 

parte 2

 

nove e meia semanas de briga

 

nove dias depois

nove anos se passaram

nove vezes te beijei

nove padre-nossos

nove ave-marias

nove dias da morte

 

dez anos correm

dez palavras morrem

dez dias de solidão

dez sonetos de amor

dez nota dez

desencontro total

                        ao saber

que nem cem anos ou mais

um pouco

durou a guerra

de cem anos

 

e o amor?

 

 

 

 

poderosa

 

o espelho só reflete o que quer

é o dono da imagem

 

alguma deformação em meu rosto

faz parte de minha engrenagem

 

mastigo todo o silêncio

e engulo o que me reflete

 

a escultura que nunca aparece

sou a madrasta da Branca de Neve

 

 

 

 

aquela canção do chico

 

toda manhã ela acorda

move-se como uma planta aquática

invade meu mar sem espelhos

vai até meu mar profundo

200 milhas além de seu eu

 

todo dia ela me irrita

provoca-me as dores do parto

mas não sou uma muiér tranquila

e só respiro quando o vento se apaga

e só digo as verdades de homem

 

todo manhã nos punimos

com gestos fechados de briga

descompondo o passado de amantes

recompondo o futuro e o presente

estamos ausentes de sonhos

 

todo dia sonhamos

e o pesadelo de um sonho

é estar acordado e ser parte

de deus pai e poderoso

nós dois expatriados do amor

 

toda manhã me abraça

me diz pra partir depressa

que eu sou como a lua

e sol da manhã me queima

tornando-me azul profundo

 

todo dia rezamos

pedimos a deus misericórdia

e xingamos um ao outro

pela humanidade que criamos

desde que o fogo nos congelou

 

toda manhã me toma

me pega pela mão e me leva

a lugares negros e tristes

dentro e fora de mim

dentro e fora de deus

 

todo dia me acalma

mudando a cor de minha aura

iluminando as cavernas

e construindo o pó

do pó que sou feito

 

toda manhã eu minto

porque nunca escrevo de manhã

escrevo de manhã de tarde

quando o sol arde

neste verão de 98

 

todo dia e todos na praia

e eu vendo a infelicidade

em celulite na sua face

quem me diz que envelheceu

envelhecemos lado a lado

 

toda manhã dou ponto final

a este poema

mas acordo o dia seguinte

e continuo eternamente

a tirar-lhe sons polifônicos

 

todo dia você me toca

e aquece o que se precipita

no abismo da mediocridade

eu empurro o meu entulho

o meu lixo, ah! esse lixo

 

toda manhã é igual

vem o guarda animal

e dá uma porrada num negro

ou num mendigo sem força

pra comer uma muiér

 

todo dia ignoramos

quem somos pra ser

quem somos

pois é se negando

que nós nos damos

 

toda manhã eu ouço

a mesma rádio

o mesmo disco

e alguns bebês de porre

querendo leite em pó

 

todo dia visito o hospício

dou uma volta em torno de mim

percebo o meu vício

o de querer não ter fim

o de querer sexo implícito

 

toda manhã me arrumo

ponho longas botas de chuva

e quando chego na porta

teu sorriso solar

elegeu o céu o azul

 

todo dia embrulho o tempo

desembrulho, coloco no freezer

desanco a falar mal de amigos

e tudo o que escrevo é motivo

pra reparos no carburador do passado

 

toda manhã me inoculo

dentro de você sintomas

dentro de você aromas

e fora: noves fora

nada inexorável quanto verdades

 

todo dia você me ganha

numa partida em que flores

escondem as armas

e onde beijos são lanças

e não setas cupidáceas e inofensivas

 

toda manhã pra te ter ao lado

eu peço a vela que não demore

a trazer o fogo

e a limpar as cicatrizes

ora é noite, é noite, é noite

 

todo dia ela faz tudo sempre igual

me perturba com a música do chico

e por estar de chico

e por querer ter filhos

e por meses eu sou silêncio

 

toda manhã eu escuto

seu coração batendo dentro de mim

só que em ritmos descompassados

um sinal de que ainda não somos um

e que temos de ficar juntos

 

todo dia recebo meu imeio

aquele que enderecei a mim

aquele que joguei na rede

e usando um puçá eletrônico

me trouxe o vírus, verbo

 

toda manhã estou às escuras

navegando um barco embriagado

que vomita na vermelhidão do mar de nossas lutas

do mar em que navegamos com tristeza

por isso eu sei que somos dor juntos

 

todo dia eu rogo

e hoje é natal

pelo menos os seus olhos me procuram

e eu estou crucificado

pingando sonho e sangue

 

toda manhã eu minto

e escondo o que sou de você

e de mim

tatuado nas vísceras

com o prazo de validade vencido

 

todo dia escovo os dentes

limpo a mente dos entes

que intermitentes questionam:

onde há existir?

onde existem motivos?

 

toda manhã é fria

toda nota de mil é falsa

não existe carinho na bíblia

existe amor nos seus lábios

ou cospe em mim veneno?

 

todo dia, todo dia

eu dou de comer a rodrigo

como consigo?

alimentar este animal imbecil

sem sujar suas mãos de pilatos

toda manhã te beijo

longamente por um segundo

e não consigo te olhar de frente

seus olhos parecem tanques de guerra

me têm em mira, mísseis

 

todo dia eu me lavo

lambo o rabo

tiro as pulgas

mas as palavras que importam

ficam guardadas

 

toda manhã tiro um coelho

e a cartola fica mais pobre

porque é domingo

e eu não posso comer

e eu não devo comer animais

 

todo dia me oferecem uma droga

eu rejeito por prudência

porque não posso

porque num quero ficar um segundo longe

longe de mim mesmo

 

toda manhã me engana

me engana que eu gosto

de ser um ritual pra seus olhos

mais coloridos que os de capitu

naquela infinidade de cinza ressaca

 

todo dia me lambuza

com o mel de uma boca impura

em que a peçonha — veneno olfático —

me levará a ouvir as canções

da maré e dos mares do brasil

 

toda manhã eu cuspo

cuspo no chão

e os sonhos de pitialina

lembram jogadores de futebol

sujando o gramado chão — tela em branco

 

todo dia eu penso em voz alta

eu falo em voz alta

eu te xingo em voz alta

mas peço perdão feito brisa (que ninguém

nos escute) peço perdão ventando baixinho

 

toda manhã ignoro

um pouco pra não doer

ignoro a dor dos outros

o que não diminui minha dor

esta que é intransferível

 

todo dia acendo um cigarro

e num fumo e num bebo

o álcool é incendiário

e o tabaco e a tabacaria

é um poema do ricardo reis

 

toda manhã ouço

"pamonha, pamonha"

penso que te chamam

mas é a mim que as palavras querem

"pamonha, pamonha"

 

todo dia eu abuso do sonho

eu vejo andrajos nos seus olhos

eu olho no microscópio

sua lágrima é seu sangue

seu sangue é a sua lágrima

 

toda manhã penso

num nome pra você

que tal se chamar poesia

ou poema ou poética

ou nuvens de leite condensado

 

todo dia

o dia inteiro, me inspiro

devolvo ao mundo o que quero

penero me esmero em ser

poeta todos os dias

 

 

 

 

resíduos

 

I

 

Tudo está lá

 

O que não está estará

 

 

II

 

Manuel Bandeira viu um rato

Ele olhou nos seus olhos e se viu

 

Ali havia algo de humano

As portas estavam abertas e paradas como o vento

 

O vento aberto comia o silêncio e

alguma coisa fazia barulho

 

Era o barulho de alguma coisa

Alguma coisa balançava Bandeira

 

E lá no fundo: bem lá no fundo havia um homem

 

 

III

 

Havia um homem e um espelho e uma barba por fazer

Havia um barbeador enferrujado

 

Ele sujou o rosto de alguém

Ele olhou nos olhos de alguém

 

E novamente olhou-se

 

 

IV

 

Ao se ver no espelho não reconheceu quem era

Reconheceu um anão albino que estava do seu lado

 

O anão sorria e lhe mandou através do espelho uma flor

Ele beijou o anão e fez o bem-me-quer e o mal-me-quer

 

Enfim se apaixonou por si

 

 

 

 

o cobrador

 

Quem sabe alguém comprou a paz

Que Deus queria me dar quando morri.

 

Quem sabe vá morrer de vez e dessa vez

Será a última vez. Eu prometo que o silêncio

 

Comerá meus testículos enquanto o céu for

O caos de brigadeiro néon

 

 

 

 

os fractais

 

fractais são braços

ruídos abertos feito

 

bocas de sino

fazendo blemblem

 

na rosa eunuca

e carnívora que brota

 

do céu de uma espinha

na pálpebra do cu

 

 

 

 

edipando

 

quando me come

come-me ama-me

doma-me a crina

 

rebrilha o olhar

olha-me e beija

a flor do pomo

 

poma-me ponha

no caos do umbigo

placenta-me a ti

 

 

 

 

azulzinha

 

a coisa caos

coisou coisa

em mim

 

pousou luz

no reflexo de ti

espelhei-te

 

o caos de mim

florou-se

azulzinha

 

 

 

 

dormir

 

dormir doze anos e inda

acordar mais velho q o uísque

 

ciscar o mar de minha fome

ovinhos de codorna

 

contorna a aurora

q brinda e deflora toda aura

 

de estrelas q as pontas nuas

dos mamilos teus me olham

 

ainda

 

 

 

 

de composição

 

a palavra

exata

cumpre

exala

certeza

 

a palavra

errada

 

sua

pelos poros

da verdade

 

evapora

se esvai

e fede

lágrima de

axila que é

 

 

 

 

*

 

pteroframes surgem

na imagem

 

logo se vê o fantasma.

e além disso

se dissolvem

os chuviscos

 

alguns seres

orgânicos que

me causam náusea

como o carrapato-azul

e a lampreia e

os vagalumes

com lâmpadas

na ponta de

suas bundas

piscam

estroboscópicas

 

mas os piores

são os homens com

monitores voltados

para o próprio cu

e o umbigo colado

no ego

 

sabendo que

todos acabaremos lá:

sete palmos abaixo

 

 

 

 

*

 

a arte do enfarte

faz da morte um desastre

 

um desastre de cigarros

e pressão alta

 

algo escuro me ataca

a dor do peido

 

que dilata

é só uma cola na lata

 

 

 

 

bombril

 

o muro

pra pichar

 

o muro

pra abaixar

 

e defecar

 

 

 

 

escuro

 

berlim teve um muro

você tem um muro:

quem pode olhar

pelo seu furo?

 

 

 

 

flor

 

rastro de tua voz

foice de ponta dedo

 

me ponha em silêncio

ou contornando-te

 

toda

 

 

 

 

alma gêmea

 

O retrato me dizia algo quando não me dizia nada. Assim íamos até o dia em que a empregada o espatifou no chão. O retrato ficou em papel. Mas a moldura feita do nosso amor, não. Empregada gostosa é foda.

 

 

 

 

3 X 4

 

o três por quatro

não é um retrato

é o close de um fato

 

algo que fica na carteira

de identidade pra sempre

 

como se nunca um dia

tivéssemos sido gente

 

 

 

 

retratinho

 

o retratinho se iguala ao retratão

quando feito por um artista

 

o retratinho só não é igual ao grande

quando a gente fica maior que a vista

 

e o retrato e o quadro se igualam

quando o pintor é um chato

 

que pinta tudo o que vê

como se fosse mero retrato

 

 

 

 

fotógrafo

 

também aguardo a primavera

e seus dedos de aurora

 

mastigo os ventos do inverno

e assim cavalgo a libélula

 

então me diga quanto tempo

temos antes de comer os elefantes

 

as vozes que escuto são iguanas

e as iguanas são as semanas

 

assim estive em Bélgica

olhando a pele de uma cobra

 

como se todo esse movimento

fosse na sua totalidade um nada

 

que envolto num barulho musgo

cuspisse tudo o que é sujo

 

e sujo vou me alimentando de tintas

riscando-me como um lápis sem grafite

 

toda a esquisitice existe

e a minha poesia é a mais pura velhice

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