KANsas

 

Leonardo Gandolfi

 

 

 

Uma hora antes do seu enterro

estou em casa escolhendo qual calça vestir,

a casa onde moro há 28 anos

e de onde sairei daqui a seis meses.

Abro um pacote de biscoito recheado,

não serão de penúria os meus

passos até o ponto de ônibus.

Estou ficando gordo, é verdade,

troco a calça e amarro o tênis.

Este pacote o meu último: primeira e melhor

homenagem póstuma que farei a você.

 

 

 

Conta pra ele.

Contar?

Conta pra ele.

Mas...

O que aconteceu com ela?

Não, o Rodrigo./ Em lugar da mãe

(CTI), morre o amigo.

Alívio e, sabe agora, carrega consigo

uma taquicárdica bomba-relógio

que quando dispara até a si mesma sabota.

O grande mal trabalha lentamente

e no escuro. Senta-se na cozinha

e para além do risco de bomba

sente-se o pior homem do mundo.

Longe dali umas seis ou sete pessoas

em lugares diferentes não veriam

problema algum em concordar com ele.

 

 

 

Cada um, Totó, tem

o Kansas que lhe cabe

embora eu ache que nem

estejamos nele mais.

 

 

 

Sem passado assalto fotografias

alheias e integro-as à memorabilia

mais próxima que por acaso é a minha.

Me conta a fascinante história da sua vida,

leio num outdoor imaginário que faria

facilmente do recém-falecido Salinger

o autor dos Minutos de Sabedoria.

A única e burra sabedoria de que somos

capazes é a de ver sumirem os nossos

um a um. Depois do pai, o cachorro

e assim sucessivamente, naturalidade alguma.

Cada coisa, tanta gente, para onde caminha

tão frouxo coração? à esquerda de quem entra,

diz meu personal salinger. Vou pra sala

e a sala é um poço. Bem localizado no sofá

começo a assistir pela undécima vez

a Blade Runner. E cheio de esperança

penso no futuro de milhares de pessoas

entre as quais os replicantes.

 

 

 

Após o sepultamento erro o caminho

e fico perdido entre estas aleias

de árvores ressequidas que com certeza

só existem na latitude e longitude do Caju.

Não sei o que estou fazendo aqui,

perdido dentro do cemitério nesta tarde

pra variar ensolarada, era o que faltava.

Entre campas do século retrasado entrevejo

a de Cruz e Souza, o que estou fazendo,

pergunto-me, melhor, o que está fazendo,

pergunta-me a bruxa malvada do oeste,

quando a melhor pergunta mesmo seria

para onde estou indo? Distante,

de onde mal pode me ver, seu irmão

— como você dizia, o último sinal de

bondade na Terra — em solidariedade grita

É por aqui. Sem graça tomo o rumo certo,

reintegro-me ao grupo dos que assistiram,

amigo, ao seu último número.

 

 

 

Como muitos de minha geração

sou um ás em projetos a curtíssimo prazo.

O mesmo com o ressoar das trombetas

e com a sorte de ouvir ou deixar de ouvi-las.

Ao meu próximo estendo a mão e faço

dos seus os mais baratos dos meus argumentos.

Tudo é pólvora e queima porque queimar

é o princípio interno de tudo o que tocamos,

diz o fantasma de plantão. Nada mais

de quebrar a cabeça sem saber se é

por ilusão derrota vaidade ou pelos três

que assino estes papéis de fácil extravio

assim endereçados ao amigo que se ausenta.

Ouço as trombetas. Em casa nova conta-se

uma chaleira também muito nova que agora,

início da tarde, começa a apitar. Sinal

de que a água ferveu e de que haverá chá

xícaras de chá para os meus convivas.

 

 

 

Querido autor, escreve-me o cão de Dorothy,

veja só como muda de direção o rio

cuja largura excede seu próprio comprimento.

 

 

 

Ou

o aperto de mão foi criado

para provar que os

envolvidos estão desarmados.

 

Ou

os animais de estimação

em seu curto tempo ajudam

as crianças a entenderem

melhor a morte em família.

 

Ou

comprimidos ao longo da vida

retardam em alguns anos

o processo de decomposição.

 

Ou

os elefantes quando

pressentem o próprio fim,

autopiedade alguma,

se afastam da manada.

 

 

 

Os pioneiros chegaram

e com eles também as primeiras mudas.

A regra era plantar cada árvore

a uma distância razoável em relação

a outra. Todos respeitaram a regra

e passou a ser perfeitamente habitável o lugar.

Houve sombra frutos e um vento que cedo

perceberam ser decisivo para a cultura

nômade. Quem virá depois de nós,

perguntavam os pioneiros.

 

 

 

Imitação de Pere Gimferrer

 

25 de junho, Michael Jackson

e apenas posso dizer que — como só ele pôde —

morreu uma vez mais, e ainda por cima

— como quase todos — continuará

morrendo por datas seguintes.

 

30 de junho, Pina Bausch

e dela eu sempre soube pouco,

a não ser que também dançava,

mas sem levar em conta

o que é/ não é dança.

Como Pina Bausch em suas viagens

integrava ao seu grupo dançarinos locais,

um dia conheci uma moça

muito bonita que dançara com ela

e que me disse: “nunca mais fui a mesma”.

 

2 de julho, Rodrigo de Souza Leão

sobre o qual para efeito de luto digo

o que disse também ao fim de um poema

o grande poeta espanhol Pere Gimferrer,

digo-o, é claro, sem o mesmo brilho e inflexão

 

Qué triste es todo esto.

 

2009

 

[Publicado na Relâmpago, Revista de Poesia n.26,

Fundação Luís Miguel Nava: Lisboa, abril 2010]

 

 

 

 

Leonardo Gandolfi (Rio de Janeiro/RJ). Poeta e professor de Literatura Portuguesa. Publicou No entanto d'água (7letras, 2006) e A morte de Tony Bennett (Lumme, 2010).

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