o homem visível

 
José Aloise Bahia
 
 

©tomas rangel

 

 

VISÍVEL. A palavra não está no livro de Barthes. O seu contrário pode ser a ausência, qualquer que seja a causa diante de uma perda. O despertar da amizade verdadeira, encontro sublime, torna perceptível a alteridade em benefício do mundo. E a todo momento ele clamava, sem repetir: "Eis o que eu sou". VISÍVEL.

 

  1. Num breve depoimento público no dia quatro de agosto de 2009, acompanhado de outras leituras, no projeto Terças Poéticas, Palácio das Artes, Belo Horizonte, MG, eis que (re)lembro o processo da amizade. Que começou e terminou na internet. Foram e-mails, telefonemas, skype e a webcam em torno de telas. Cara a cara. Quadros e diálogos a perder de vista sobre contemporaneidades, artes, literaturas, gentes, sociedades, cores, músicas, fantasias, mulheres, saúdes, cidades, vários assuntos e futebol, é claro — ele, carioca da gema, Flamengo; e eu, mineiro sempre mirando o universo, Cruzeiro. Tivemos encontros marcados por palavras, frases, períodos, versos, poesias, livros e segredos...

 

  1. Há encontros visíveis e invisíveis. Deve-se continuar o testemunho fragmentado!? É possível que (re)veja as estrelas no raiar do dia, o cigarro queime os dedos e a lembrança abafada, contaminada, reapareça em lágrimas. Mas, estou preso num depoimento visível do qual não posso sair. Não há uma cenografia da espera. De um lado, livros. Luís de Camões, canção VII, no seu Os Lusíadas: "E em mansa paz estava/ Cada um com seu contrário num sujeito". Decerto, o grande adversário dele foi a loucura. No entanto, para contrariá-la (pois ele era um ser-humano — prefiro esta palavra assim, composta e separada pelo tracinho — meio descontente com um punhado de coisas), instituiu pra si um outro tipo de lowcura: criativa, diferente e original. Detestava cagar-regras. Muito menos usar carbono pautado para se limpá-las. A loucura do qual eu falo tem como base a literatura, e na mediação da vontade e o entendimento, aquilo que acrescenta algo ao próximo. Aquilo que divide, sem tirar. Que suplementa, sem a necessidade de receber algo em troca. O oposto de usar. Pode ser o amor ou a caridade. No caso dele, a virtude que o caracteriza é a generosidade. Literatura e generosidade, os remédios da sua vida. Muito bem lembradas por Frederico Barbosa, noutra homenagem feita por vários escritores brasileiros, na Casa das Rosas, em São Paulo, no mês de julho de 2009. Por que falo em literatura e generosidade em tom solene? Pois as duas palavras e uma ação estética comunal no mundo da vida real, natural e virtual configuram a viagem de ida e volta que sempre permeou a nossa amizade. Visível. Que começou na internet há mais ou menos cinco anos, em torno de um site de literatura & arte com um nome bem especial: Germina. Diante da linguagem e suas desordens germinou a verdade. E no meio desta amizade, aparece uma outra pessoa muito especial para ele que foi e pra mim que fica: Silvana Guimarães. Uma mulher de fibra, editora, escritora, esclarecida, educada, sensível, inteligente, que também faz parte deste comportamento e identificação contínua, que é a estética comunal.

 

  1. Imagine que poderia ficar aqui horas e horas contando os nossos causos... Um deles: a admiração que tinha por Minas Gerais, que não chegou a conhecer. Seu desejo sincero: percorrer as ladeiras de Ouro Preto. Conhecer o Mineirão. Quando comentei há tempos que nasci em Bambuí, Oeste de Minas Gerais, perto da Serra da Canastra, nascente do Rio São Francisco... E não é que ele foi pesquisar no Google e me perguntou, dias depois por e-mail, sobre Casca D'Anta... Isso mesmo! Queria ver e sentir a cachoeira, os animais do Brasil, tatu, tamanduá, siriema, capivara, canário, bem-te-vi, gavião carcará, flores e a vegetação do Parque Nacional da Serra da Canastra... Ele adorava os animais, principalmente os pássaros... Foi doloroso, não importa o que pensem: a lembrança é um par de asas ao vento num gesto feliz e momentâneo de liberdade.... Teve um outro acontecimento/encontro interessante. Foi quando relatei a origem da minha família — ele já havia comentado sobre a origem nordestina paterna —, oriunda do Norte de Portugal e Galícia espanhola, que chegou ao Brasil mais ou menos por volta de 1690/1700, estabelecendo-se em Minas Gerais, onde hoje é a cidade de Pitangui, também logo ali, no Oeste de Minas Gerais... Ele foi logo perguntando: "Zé, aposto que tem algum padre na sua família?". Acertou em cheio, pois ele sabia que sou católico, e o tio-padre Sinfrônio Bahia da Rocha (o mesmo nome do meu pai) estudou no Caraça há mais ou menos 100 anos... Pois bem, quando falei sobre o Caraça, não deu outra, a sua curiosidade novamente veio à tona... Passou exatamente dois dias e recebo uma ligação: "Zé, dizem que os lobos guarás do Caraça são mansos e muito bonitos. Comem nas mãos dos padres!". E eu ali escutando, doido para convidá-lo, mas sabia que por causa do seu estado mental não conseguiria sair para uma viagem mais longa do apartamento dos pais, do seu Bairro da Lagoa, da cidade do Rio de Janeiro, RJ... Nos últimos tempos, ele frequentava a Escola de Pintura do Parque Lage, no Jardim Botânico do Rio... Pintou várias telas e painéis... "O que é grande/ É a arte/ Há vida em marte"... E "tudo ficou van Gogh"... Ele adorava as cores... E sempre questionava minha avaliação estética das obras... E eu ficava num mato sem cachorro... Azul, amarelo ou vermelho...

 

  1. Enfim, foram muitos diálogos... O mais lindo foi quando relembrou a infância: o período mais feliz da sua vida... Todavia, a declaração final, perpassando à memória, ele com a sua generosidade, rebeldia criativa e paixão (a literatura), e após conversar com os pais, dois/três dias depois do sepultamento, veio (sempre vem à memória!) uma das suas manifestações derradeiras... O seu pedido lúcido de escritor e ser-humano: "Jamais tenham pena de mim". Hoje, o que tenho é admiração, respeito e carinho por ele e a sua literatura, pela família e o orgulho de termos fundado juntos, no começo de 2009, na Germina — Revista de Literatura e Arte, uma coluna que batizamos de A GENÉTICA DA COISA, que trabalha em duas pontas da literatura: nos fundamentos da contemporânea atividade, que alguns chamam de crítica genética (convém citar a professora Cecília Almeida Salles da USP) e, do outro lado, a estética da recepção em Wolfgang Iser, Hans Jauss, Hans Gumbrecht e Luiz Costa Lima... Genética vem do grego Gennos, e quer dizer fazer nascer... Na sua partida ele fez nascer a visibilidade necessária, para que a imagem jamais seja esquecida...

 

  1. Rodrigo de Souza Leão, a minha eterna gratidão por esse belíssimo encontro em nossas vidas... Onde estiver, estará sempre no meu coração, na natureza poética das palavras, versos, estrofes, na prosa delirante, na liberdade de um anjo e no sentimento interminável, só conhecido no galego-português, na tradição marítima lusitana, que alguns chamam de saudade...

agosto / 2009

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e colecionador de artes plásticas. Estudou Economia (UFMG). Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH).  Autor de Pavios curtos (Belo Horizonte: Anomelivros,  2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (Lisboa: Fundação Camões/Belo Horizonte: Anomelivros, 2005), dos livros Pequenos milagres e outras histórias (Belo Horizonte: Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007), Folhas verdes (Belo Horizonte: Edições A Tela e o Texto, FALE/UFMG, 2008) e Poemas que latem ao coração! (São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2009).
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