carbono pautado

[trecho]

 

 

Tudo era bom, amável e cordial. Os gerânios cresciam nas paredes. A primavera crescia em amor. Tudo tão bonito. O sol refletido no horizonte de árvores e prédios fazia com que se adensassem tal nuvens as camadas de luz mais fluidas. Desordenados, os helicópteros pareciam pássaros de tão livres. Eu me olhava dentro do cenário. O que um homem poderia querer mais da vida? Havia alcançado a felicidade. E o pote de ouro além do arco-íris. O Psiquê fazia mais sucesso do que nunca. Meu trabalho, notado e respeitado, galgava o coração dos internos. Conquistava-os pouco a pouco, sem intenção, sem fazer força. Comecei a escrever meu livro de versos. Durante quase um ano me dediquei ao jornal e aos versos. Publiquei-os na editora da Academia Psicótica de Letras. Passei a ser mais respeitado do que nunca. Considerado. Ah, enfim para isso tanto lutara, tanto quis fazer no mundo externo. Com a minha influência entre os detentos, me tornei cabo eleitoral de Inácio Plinto para a sucessão na Presidência da Academia Psicótica de Letras. Plinto havia sido líder sindical, lutado no partido comunista, mas, na atualidade, escritor de mão cheia, demonstrava todo o seu talento no livro Os abismos rasos. Mostrava que havia uma luz no fim do túnel pós-modernista.

O oponente a Inácio, o não menos nobre Dogoberto Trevo, dono de uma prosa proustiana, tinha tudo para ser o presidente. Havia lealdade na corrida presidencial. Não se disputavam plataformas políticas. Cada candidato fazia uma prova, igual a do outro, elaborada pelo Conselho dos Cinco, e quem tirasse a média mais alta recebia a consagração e a glória. Não havia dúvida quanto a integridade da banca, muito pelo contrário, eles tinham o respeito de toda a população do hospício. Entre os internos havia predileções e não apoios. Tanto que Plinto teve uma nota inferior a DagobertoTrevo. Não fui senão mesuras para com o vencedor e sequer lamentei a derrota de Plinto. O novo presidente era o mais capaz entre nós. As próximas eleições seriam em dois anos.

Passados anos de muito estudo e dedicação, meu nome foi ventilado para a presidência da Academia Psicótica de Letras. Comigo irmanado na disputa, o semiólogo Brados Calif Hua III. Recém-internado e dono de uma erudição estupenda, mesmo com pouco tempo entre os internos, já fizera de sua voz um brilhante eco. Possuía uma pronúncia delicada e quase poética, e todos os requisitos necessários para participar de tão enorme empreitada. A presença da ilustre figura só fazia enobrecer a disputa.

O dia do grande teste estava marcado. A banca — o Conselho dos Cinco — fez as cinco perguntas. Eu debruçava-me, ao lado de Brados, para respondê-las. Por ter jurado sigilo, não posso declinar aqui o conteúdo das questões, mas posso dizer que, das cinco, duas foram de literatura e duas de filosofia, sendo a última uma questão interdisciplinar abrangendo sociologia, antropologia, filologia, história. Terminei a prova dois minutos após meu concorrente. Não havia limite de tempo para se dar as respostas. Por isso passavam-se dias e dias escrevendo sobre as questões. Parava-se para tomar água, comer e ir ao banheiro. Contudo, para mim e Brados, doze horas foram suficientes.

O Conselho se reuniu. Corrigiu a prova e, sobre aquela grande lua, todos os lunáticos da Casa Verde bramiam a minha vitória. Ovação. Glória. Tudo tão bonito. Os internos recitavam Rimbaud no original. Ao meu lado, o outro candidato era só mesuras e delicadezas comigo. Nos abraçamos. Disputa limpa. Homens de fato.

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