TOdos os cachorros são azuis [trecho]
(...) Na minha voz, um grito. Mas
o Haldol me segura. Segura meus gritos, sussurros. Eu, que já escondi
muito remédio debaixo da língua, hoje tomo todos sem problemas. Sei lá se
adianta. Sei apenas que sinto falta dos meus dois amigos. Rimbaud aparece
e me diz que está com aids. Quer fazer um pacto de sangue comigo. Aceito o
que ele pede e corto meu dedão. Baudelaire aparece e diz que quer fazer
parte do pacto. Só o fato de morrer de outra coisa que não seja o chip (ou
o grilo), já me deixa alegre. Morrer com Rimbaud e Baudelaire. Melhor,
impossível. Acugêlê banzai! Já
estive na China. Contando assim, parece que viajei muito. Era um lugar
muito bonito, cheio de gente, bicicletas e muitas nuvens. As nuvens,
nuvens. Ali tive fome, tive sede, era estrangeiro e loucamente amei as
nuvens longe, lá muito longe, as maravilhosas nuvens! Desenhos no céu.
Quando o dia está assim, um dia de sol, um dia como este, não quero mais
sair daqui. Vou dormir no verde calmo de um Lexotan seis miligramas. Me
agarrar ao meu cachorro azul e fazer pactos com a felicidade. Lembrar-me
da China, das suas bicicletas, da sua bandeira vermelha cor-de-sangue e
finalmente, das incríveis nuvens do céu chinês. Acho que depois do pacato
pacto de sangue, serei mais feliz. Quero morrer de tudo, menos por causa
de um chip que engoli. Engulo os remédios. Um dia, engoli três. Outro,
engoli quatro. Não sei ao certo o que devo fazer para melhorar.
Simplesmente, porque sou um pterodátilo numa gaiola. Um corvo bicando o
ventre de um espantalho. Um homem sem medo do terror que é viver sem medo.
Never more, todos aqui não têm medo. Inclusive o Procurador Geral da
República. Ele me lembra um personagem de faroeste e de filmes de
gangster. Mesmo com sua senilidade, ele utiliza uma colher ao invés da
faca. Aqui só tem colher. Procurador faz aquela brincadeira perigosa de
percorrer todo o caminho entre os dedos com uma faca, no caso, uma colher.
O velho faz isso com habilidade, como se treinasse isso há muito tempo.
Pra se divertir. Deixar os ventos de adrenalina
brisar. Rimbaud
aparece na hora dos vendavais. São ventos que o trazem e me fazem viver
enrolado em seu cachecol. Fuma maconha. Desmancham perto de mim as
baforadas que Baudelaire dá no seu cachimbo. Ele me diz que é um pai de
santo. Ele me diz que tem poderes. Renova minha linguagem. Eu acredito
piamente nele. Rimbaud é a tempestade. Baudelaire é o vento. Um toma éter.
O outro, cocaína. Triste, sou apenas aquele que descobre que os remédios
coloridos engordam e fazem, cada vez mais, eu não conviver com estes meus
amigos de longa data. O que é a vida sem amigos? Sou como Emmanuel Bove
que secretamente amava os amigos que não tinha. Sou amigo dos meus olhos.
Eles só vêem o que quero. Olho pelos meus óculos coloridos e vejo tudo em
preto-e-branco. Tudo parece um filme de Bergman. A
propósito, me pareço um pouco com Charles Laughton. Por
pouco tempo, espero. Por que estar gordo e beber café com açúcar? Tudo com
muito açúcar. Vejo relógios e as xícaras de café. Cuspo bolas de sabão.
Viro um trem que vai indo sem saber onde parar. Me transformo numa máquina
que escreve e ela escreve o que quer que eu escreva. Ataco uma formiga
vorazmente e vou arrancando pêlos do meu sovaco. Faço uma depilação. Tiro
de mim pegadas. Calafrios. Certezas. Coisas que deveria fazer. Tiro de mim
enguias ferozes e cubro meu abdômen com algodão
doce. É
junho. Tem
festa junina no hospício. A
quadrilha de loucos está em fila. Os que tomam Gardenal não falam. Outros
tomam Haldol. Outros são dependentes químicos. Outros estão doidos por uma
cachaça e jogam sinuca de bico. Ninguém quer entrar na fila pra dançar.
Nenhum psicótico quer dançar. Nenhum oligofrênico quer deixar de dar
cabeçadas na parede. Mas Rimbaud está contente e dança sem tristeza. Está,
com o perdão da palavra, com a faca entre os dentes. É um espírito cigano,
espírito de índio. Espírito de porco. Espinho. Lepra. Aids. Silêncio de
cal e mirto, malvas nas ervas finas. Rimbaud borda alelis sobre um pano
palhiço. Voam na aranha gris sete pássaros do prisma. Pelos olhos de
Rimbaud galopam dois cavaleiros: Baudelaire e eu. Todas as coisas que
matam passam por mim. O que é isso? Cocaína ou éter? Que novo som é este?
Tambores. Não sei dançar, não sei dançar. Ele é meu amigo, um amigo,
enfim. Acugêlê banzai! Cuspo pro alto e abro um guarda-chuva. Baudelaire
fala cuspindo. Uso o guarda-chuva pra me proteger.
Perdigotos. Fui
obrigado a estar aqui. Não queria vir. Não quero ficar, porra! Avisem pra
eles que eu sou o Charles Laughton, porra! Será que nunca viram um filme?
Aqueles que estão abandonados teriam uma vida melhor lá fora, inclusive
eu. Digamos que estou passando uma temporada no inferno, uma temporada nas
têmporas com meus amigos poetas e atores. Amanhã me esqueço deles, mas
voltam depois de amanhã. Sei que nunca vão me abandonar, amigos são para
isso, não? Gari da Comlurb me convida para comer uma caixa de biscoitos
Segredo. A vida é um segredo para mim. Não sei exatamente o que ela
significa. No mundo de fora, procuro no obituário todo dia meu nome. Já
decidi: não quero ir ao meu enterro. Como será o céu dos objetos? O céu
dos relógios, das tevês, do computador, do estilingue, do garfo, da faca,
das colheres? Aqui só tem colher: ninguém come com garfo e faca. Comem de
boca aberta, menos a Lembra-vovó. Lembra-vovó come um pouco igual a minha
avó, é magra, mansa, meiga. E ainda tem um detalhe muito importante: me dá
um beijo toda a vez que passa por mim. Não sou muito chegado a beijos.
Rimbaud já me forçou a lhe dar um beijo na boca. Já disse pra ele, não
vale a pena, não posso ser o que não sou. Quem
sabe, Rimbaud, o Verlaine chega aí e resolve isso. Baudelaire
aparece com as luvas de boxe. Quase sempre Baudelaire é chato, ranzinza,
pentelho e forte. Quase, quase nunca digo sim a Baudelaire. Rimbaud está
sujo. Precisa de um banho. Focault já dizia: banho bom é banho frio. Todo
louco devia tomar banho frio antes de dormir. O eletrochoque vem do choque
térmico. É
o frio que convida o fogo. Pula a fogueira, Rimbaud. Pula,
filho da puta! O
casamento de um oligofrênico com uma bipolar de humor é feito por uma
psicóloga gostosa. Há bons médicos. A maioria dos médicos é legal. Meu pai
vem. Minha irmã vem. Meu irmão, minha irmã, Adélia e Anália, nossas doces
domésticas, com a força de mil Haldois. Estou
triste e todos estão felizes. Me
lembro até das festas juninas da infância. Por
eu ser mais gordo, danço com a garota mais gorda. A vida é assim. Gordo
com gordo. Magro com magro. Feio com feio. Bonito com bonito. Queria a
garota mais bonita. Queria comer a psicóloga. A vida é assim: louco com
louco. Fizeram
uma fogueira enorme com papel e fraldas sujas dos loucos.
As
labaredas enormes de merda comiam o rabo daquele que se aventurava a pular
as chamas. Ontem foi assim. Hoje é assim, nada muda. Quando criança.
Quando adulto. A vida escoa por um esgoto que leva pro mar. Ainda bem que
o mar é verde: a cor dos olhos do meu irmão Bruno. São olhos limpos de
sofrimento. Quem não sofre, não vive. Quem vive, come batata frita. O bom
é que sempre tem batata frita pra aliviar o fardo. Os dias são sempre
iguais e vão se repetindo. Ninguém pede licença pra entrar na minha vida,
mas arruma sempre uma desculpa pra sair. Veias fabricadas de néon lembram
letreiros que vi com Rimbaud em Nova York. Aliás, é um bom título de
capítulo: os poetas em Nova York. Imagino eu perdido na Columbia
University ou mesmo no Harlem. Vamos lá: eu seria o rei do Harlem: comeria
as pequenas judias e mataria os vendedores irlandeses de aguardente. Então
eu diria: esse é o meu território, porra! Tomo
remédio com refrigerante. A cocada sobe em minhas veias. O pé-de-moleque
chegou sujo. Algum idiota pode pensar que estou perdido nesta festa
junina, dançando com a garota mais gorda da sala. Queria dançar com
Clarissa. Queria dançar com a psicóloga. Mas Lembra-vovó se assanha e vai
descendo até o chão. Será que ela consegue se levantar? Só com um guincho.
Chamem
os paramédicos, rápido, por favor. Melhor, chamem a
polícia. [ + detalhes clique aqui ] |
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