dos demônios que

movimentam a arte 

 
 

Cultura.rj conversa com Ramon Mello

 

 

[ ©tomás rangel ]

 

 

Ramon Mello, que adaptou novela de Rodrigo de Souza Leão, conta como a obra do escritor, morto precocemente, vai muito além da literatura sobre a insanidade

 

O poeta, ator e jornalista Ramon Mello era repórter do Portal Literal quando teve em mãos, pela primeira vez, um livro de Rodrigo de Souza Leão. Em poucas horas devorou Todos os cachorros são azuis (7Letras, 2008), novela que narra, em prosa onírica, o cotidiano de um interno numa clínica psiquiátrica. Encantado pela obra, Ramon propôs uma entrevista ao autor, que vivia, há anos, enclausurado em seu apartamento, entre surtos auto-divulgados de esquizofrenia.

A longa entrevista que Ramon fez com Souza Leão é possivelmente a mais aprofundada que o autor concedeu em vida. E uma das últimas: no ano seguinte, ele morreria, aos 43 anos, numa clínica psiquiátrica. Antes, autorizara Ramon a adaptar
 Todos os cachorros são azuis para o teatro. É essa a peça que estreia neste sábado (9 de julho) no Teatro Municipal Maria Clara Machado, com cinco atores Ramon entre eles se revezando no papel do protagonista e direção de Michel Bercovitch. Na mesma ocasião será lançado O esquizóide, romance póstumo de Rodrigo, que se junta a Me roubaram uns dias contados, publicado em 2010 pela Editora Record. Os dois são frutos do trabalho de Ramon, a cargo do qual ficou a organização da obra póstuma do escritor. Desde então, as novidades têm se multiplicado ao redor da figura de Rodrigo. O ator Cauã Reymond comprou os direitos de dois de seus livros para o cinema. E as suas telas pintar era um de seus hobbies  estão prestes a ganhar uma exposição.


Cultura.rj: Você conheceu o Rodrigo de Souza Leão quando leu Todos os cachorros são azuis; em seguida, fez uma longa entrevista com ele, e acabou se tornando, meses mais tarde, o organizador de sua obra póstuma. O que fez com que você mergulhasse tão fundo no universo do Rodrigo?


Ramon Mello – Li Todos os cachorros são azuis em 2008, quando o livro tinha acabado de ser lançado. Na primeira leitura, me encantei com a coragem e inteligência do autor, fiquei realmente fascinado com o universo delirante de Rodrigo. Depois de conhecê-lo pessoalmente fiquei ainda mais interessado, li os poemas, as entrevistas com escritores. O motivo desse mergulho é renovado a cada dia. Atualmente, é para entender que Rodrigo fez de seus próprios demônios um dínamo para a produção artística.



Cultura.rj: A tensão entre delírio e lucidez é o tema central nesse universo. Podemos, porém, dizer que é um universo de lírica exuberante, vigoroso. Você arrisca dizer como o Rodrigo mantinha esse vigor criativo, mesmo que atado à esquizofrenia como tema primordial?

Ramon – Poeta, ainda que louco. Artista, ainda que louco. Ele criava a partir do outro, da literatura, da leitura. Rodrigo era um ávido leitor, sua obra é costurada de referências de outros escritores. Acredito que toda essa geleia misturada com uma imensa liberdade mantinha sua produção criativa.



Cultura.rj: Como você pautou a adaptação de Todos os cachorros são azuis para o teatro?

 

Ramon – Iniciei o projeto em 2008. Assim que li o livro, pensei: “Tenho que adaptar para o teatro”. O projeto se concretizou em 2010, quando fomos contemplados com o edital de artes cênicas do Oi Futuro. A ideia inicial era fazer um monólogo [risos]. Hoje o espetáculo conta com cinco atores: Bruna Renha, Camila Rhodi, Gabriel Pardal e eu. A adaptação sofreu modificações ao longo do processo, mas por fim se pautou na ideia de cinco atores fazendo as diferentes personalidades de um único personagem. Assino a dramaturgia com o diretor Michel Bercovitch e o assistente de direção Flavio Pardal, além de contar com a especial colaboração da escritora Manoela Sawitzki.



Cultura.rj: Quais foram os maiores desafios dessa montagem?


Ramon – Adaptar um romance para o teatro já é um grande desafio. Tratando-se da mente fragmentada de Rodrigo de Souza Leão esse desafio só aumenta. Talvez, os maiores desafios tenham ocorrido no início do processo, quando buscávamos uma linguagem cênica que estivesse em diálogo com a dramaturgia. Essa busca é contínua, a cada apresentação a investigação continua. A iluminação de Tomas Ribas e a direção musical de Rafael Rocha são grandes aliados dos atores.



A Cultura.rj: Além de adaptar o texto e coassinar a dramaturgia da peça, você é um dos atores. Que cuidados teve na montagem da interpretação?


Ramon – O maior cuidado, e de todo o elenco, é não cair no estereótipo do louco. A peça é a encenação do relato ao mesmo tempo autobiográfico e ficcional de um poeta que sofria de esquizofrenia. Para a composição dos personagens, contamos com a orientação do diretor Michel Bercovitch, do assistente de direção Flávio Pardal, da diretora de movimento Paula Maracajá e da preparadora vocal Marly Britto. Além disso, visitamos clínicas psiquiátricas e conversamos com especialistas de saúde mental como as professoras Marci Doria Passos e Silvia Jardim.



Cultura.rj: O esquizoide (Editora Record, 2011) é o segundo livro póstumo de Rodrigo. Como ele se aproxima e se distancia de Todos os cachorros?


Ramon – Eles se aproximam quando o autor volta a tratar do tema da internação psiquiátrica a partir de uma narrativa ficcional. No entanto, as diferenças são evidentes. Todos os cachorros são azuis mistura a lucidez do personagem com as alucinações frequentes com Rimbaud e Baudelaire. Já O Esquizoide narra a internação sob o ponto de vista crítico e político, através da lucidez do personagem. Penso que são obras complementares, propostas diferentes que enriquecem a leitura.



Cultura.rj: Na entrevista que você fez com o Rodrigo, ele disse que “depois que morre, todo mundo vira Ana Cristina César”. Como lidar com isso que a Flora Süssekind chama "canonização via martírio", para se referir aos riscos de transformar em mártires poetas mortos precocemente e, assim, deturpar uma possível visão crítica sobre suas obras?


Ramon – Fico muito atento a essa questão levantada pela crítica Flora Süssekind. Por isso faço questão de dizer que Rodrigo, antes de qualquer outra classificação, era poeta. Não penso Rodrigo de Souza Leão como um autor esquizofrênico, mas um autor que trabalhava em sua obra a questão da esquizofrenia. Não importa como ele morreu e sim a obra que ele deixou para ser lida e estudada.


Cultura.rj: O quanto ainda há de Rodrigo a ser descoberto?


Ramon – Há outros livros inéditos de Rodrigo de Souza Leão, como os livros de contos Objeto abjeto e Uma pá de coisas e o infantil Brincar de viver. Ele tem mais de 12 e-books de poesia, a ideia é reunir esses livros numa antologia. Além disso, estou trabalhando para conseguir verba para realizar a exposição das telas de Rodrigo no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em dezembro deste ano.



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Colaboração de Juliana Krapp

 

 

Ramon Mello é poeta, jornalista e ator — formado pela Escola Estadual de Teatro Martins Pena. Como repórter entrevistou mais de 120 escritores brasileiros. Organizou Escolhas (Língua Geral, 2009), autobiografia intelectual da professora Heloísa Buarque de Hollanda. Pesquisou e coorganizou Enter, antologia digital (2009). Participou das antologias Como se não houvesse amanhã — 20 contos inspirados em letras da Legião Urbana (Record, 2010), Rio-Haiti, 101 histórias (Garimpo Editorial, 2010), Liberdade até agora (Móbile Editoral, 2011). É autor do livro de poemas Vinis mofados (Língua Geral, 2009) e responsável pela obra do poeta Rodrigo de Souza Leão, falecido em 2009. Mantém o blogue Sorriso do Gato de Alice [http://sorrisodogatodealice.blogspot.com/].

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