neuzza pinhero: a última Entrevista
autorretrato de neuzza pinhero em imagem original de stefan
georgi Rodrigo de Souza Leão – Neuzza, você é uma artista multimídia. Existe alguma arte pela
qual tenha preferência? Neuzza Pinhero - A música. A música sempre me transporta muito além da minha
insignificância, é minha ascese. Penso no mito de Orfeu, o Mago, que com
sua voz enfeitiçava os pássaros e as feras, era seguido pelas árvores e
pelas montanhas, adormecia os dragões cantando ao som de sua cítara (da
qual foi inventor...). Eu, do meu lado, comprei há pouco uma viola caipira
encantada. Quando pequena me refugiava na igreja da cidade (Cambé, no
Paraná, onde vivi a infância e adolescência). Havia um grande órgão de
madeira escura. Uma beata estranhíssima, muito alta e corcunda, entrava em
silêncio envolta em véus negros e tocava peças de música sacra. Assim como
chegava, desaparecia. Eu amava toda aquela fantasmagoria. Depois, ganhei
uma bolsa de estudos num colégio religioso (salesiano) e ali ouvi Haendel
e Bach pela primeira vez. Aprendi a cantar em latim durante a missa, no
coro de meninas. E amava. Queria ser pianista, cantora lírica. Cheguei a
ter algumas aulas de piano (Tereza Knoll, era o nome da professora), que
foram interrompidas por falta de dinheiro. Fui me desviando pra música
popular, já que meu pai, grande violonista, me iniciou como crooner aos 14 anos. Sim, me
tornei cantora de bailes pelos clubes do interior do Paraná e cantava
também em festas regionais. Vieram os festivais universitários de
Londrina. As mulheres reinavam absolutas, sempre levavam o prêmio máximo
como compositoras ou intérpretes. Foi ali que conheci Arrigo Barnabé,
Itamar e Denise Assumpção. RSL - A sua poesia é uma poesia simples, mas muito forte. O que a
simplicidade traz ao poema que a complexidade
tira? NP - São sons, são sons... O poema começa com a voz do vento e os
tambores, com a voz humana querendo denominar as coisas, mostrar as
coisas, o crepúsculo, as estrelas, o raio ("tudo claro / ainda não era o dia /
era apenas o raio...", Leminski); e as diferentes línguas se
espalhando pelo mundo. O simples não é fácil... Sinto que
carrego dentro de mim — todos carregamos — esse processo de invenção,
milênios e milênios. Você sabe, as palavras e depois a escrita, os
pergaminhos, o registro das primeiras histórias... Talvez a poesia seja
aquele ponto em que se consegue ouvir, sentir de cada palavra a sua
história, que é a minha, a nossa ("minha pátria, minha
língua"...). É como sentir a pulsação de quem se ama; como se
eu roçasse o dorso da minha mão na pele da palavra e ela me olhasse nos
olhos contando a sua intimidade, os seus segredos. Penso que o poema deve ser claro
como o raio; um modo tão único, tão inusitado de falar sobre a chuva, por
exemplo, que lendo, é como se nunca tivesse chovido antes. O livro Pele & Osso apareceu quando
comecei a questionar profundamente se eu era real, se tudo que via não
passava de delírio. Um momento de pânico literal, de suores, taquicardias
violentas, um sentimento de morte iminente, enquanto os acontecimentos se
desenrolavam sem trégua, independente do ritmo convulsivo ou não do meu
coração. Eu me via absolutamente só, frágil e sem sentido. Pensei em
abandonar tudo, sair pelo mundo... Pele & Osso surgiu naqueles
dias de pesadelo. Surgiu assim, seco, trêmulo, andrajoso. E foi se
construindo tal como eu me sentia, em choque (lucidez fabrica espelhos / repletos de
eletrochoque / os sinais ficam vermelhos / não há mistério / que
volt...), poemas assim como esse, convulsivos e outros, quase
que se desmanchando, num deboche de mim mesma (um dia ainda viro éter / esvazio tudo
/ só deixo o suéter...). Foi meu De Profundis, eu me explicava, e
assim me sentia quase curada. É possível que a simplicidade represente o
cúmulo do Mistério, essa fusão de espelhos. RSL - Quais são as suas principais influências
artísticas? NP - No início foi minha avó materna, Gercina Placidina de Campos.
Gercina era filha de uma
negra bonita dessas que depois da tal "alforria", permaneceu ali, sem ter
pra onde ir; e sinhozinho, já de olho, se apropriou do corpo. Daí resultou
minha avó; cresceu sem mãe (minha bisa "desapareceu" sem deixar rastro),
foi educada por sinhozinho, um solteirão dono de muitas terras no interior
mineiro. Com 14 anos, Gercina fugiu com um cigano que tinha aparecido por
lá procurando trabalho: meu avô Ezequias Marques. E foi deserdada. Era uma
mulher silenciosa, sarará, cabelos imensos e armados, presos num coque com
presilha de osso. Convivi com ela desde muito pequena. Gercina Placidina
vestia um mantô marrom (perto do outono se agasalhava), sentava-se no
quintal no início da noite, quando tinha lua. E eu me sentava do lado, no
chão, perto do banquinho de madeira onde ela se acomodava. Então, começava
o ritual: ajeitava a palha de milho, "alisava" com o canivete (era um
canivete muito antigo) cortava o fumo de corda cheiroso e apurava na palma
da mão; ficava ali num meio sorriso olhando as estrelas enquanto curtia o
fumo, esmerilhava entre os dedos... Preparava o cigarrinho numa calma
prazerosa, e lânguida, levava até à boca, os lábios grossos... Tinha uma
binga prateada, que trazia sabe-se lá desde quando. Aspirava fundo, dava
aquela baforada e ia soltando as espirais de fumaça... Eu, sentada aos pés
dela, via as estrelas se movendo, dançando em meio à fumaça do cigarro de
palha; e aquele perfume suave achocolatado... No inverno ela esquentava no
fogão à lenha um tijolo, embrulhava num saco de algodão e vinha aquecer
meus pés (eu sempre fui como ela, sempre senti muito frio...). Aos
domingos ia com vó Gercina na Igreja Batista, ia só pra ouvir ela cantar
no coro da igreja. Tenho o timbre rouco igual. Mas a textura e o banzo,
era coisa única, ancestral, de uma grandeza que nem ela percebia. Eu,
sim... E teve meu pai que nasceu músico, aprendeu a ler e escrever
sozinho, aprendeu a ler partitura, tocava tudo que lhe caísse nas mãos,
principalmente cordas. Era barbeiro durante o dia. J. Pinheiro tinha muito bom gosto, a gente ouvia
Mário Reis, Noel Rosa, Lupicínio, ouvia Gardel, Orlando Silva... Ah, e nos
fins de tarde ele pegava o violão e fazia solos absurdos como Abismo de Rosas... Som de Carrilhões... Depois a
gente ficava cantando, ele, eu e minha mãe, que amava Dolores Duran e
Ângela Maria. Foi uma coincidência mágica e também trágica, o encontro dos
dois; mas isso é uma outra história... Enfim, eu cresci solta, no
interior, subindo em árvore, roubando manga, comendo melancia quente pelos
cafezais, ouvindo berrante, passarinho, vendo boiada passar toda manhã
rente à cerca de casa. A Natureza era outra. Acordava com rádio ligado,
Cascatinha e Inhana, Alvarenga e Ranchinho... Depois a Bossa Nova, a
Tropicália, e Janis, Hendrix, Beatles... E Arrigo Barnabé, Itamar
Assumpção.. E Satie, Billie Holiday... Sempre achei que Satie e Billie
Holiday fossem do mesmo planeta. RSL - Como a internet ajuda a criação e a reprodução de seu
trabalho? NP - A internet é uma ferramenta poderosa, indispensável, em
divulgação, em pesquisa de sons, imagens, sites, links, revistas virtuais
em múltiplas áreas, trabalhos acadêmicos, a Wikipédia, o Google aí, o
Myspace [http://www.myspace.com/neuzapinheiro], as comunidades orkutianas. Vivemos a era dos blogues, esse meio
de interação planetária, análise, ombro, desabafo, produção, descoberta,
enfim... A poesia tem se manifestado, bem ou mal, através de milhares de
blogues: o blogue acaba sendo um termômetro do que se passa no mundo.
Criei um há pouco tempo, o Spirituals do Orvalho [http://www.spiritualsdoorvalho.blogspot.com/],
verdinho ainda, mas vai se tornando já bem frequentado e lido. Editoras
maiores por aí, a gente sabe, se especializaram em livros de auto-ajuda,
que vendem aos montes e nos ensinam a ser "pragmáticos": querer mais,
conseguir mais, e mais rápido. Aos poetas resta a boa vontade das pequenas
editoras e, sobretudo, os blogues. RSL - O que é necessário para que exista o fenômeno
poético? NP - Seria necessário estar bem vivo e bem conectado consigo mesmo;
nu, descalço e apaixonado,
beirando a lucidez do abismo. Seria preciso desejar o imponderável, buscar
nas coisas algum compartimento intacto. Desmontar e reconstruir o mundo de
uma perspectiva única, inusitada. Isso carece de poderes sobrenaturais,
como diria Jairo Pereira, o Abduzido. A palavra é uma outra nave, uma
outra mãe, um outro útero. A gente queria retornar quantas vezes fosse
necessário. E começar sempre do início. Começar não sabendo. A magia em
ser poeta é encarar uma folha em branco sem a mínima ideia do que pode
acontecer. Mas sempre queima uma pergunta: o que posso dizer eu? Que
poesia oferecer aos meus contemporâneos desterrados no tempo e no espaço,
aos que vivem como eu os mesmos eventos desconexos, instantâneos, como se
cada instante fosse o último? Poetas, já se disse, foram mensageiros entre
deuses e homens. E agora? RSL - Quem é o cantor brasileiro hoje? Como
vive? NP - O cantor brasileiro perdeu o glamour de ídolo, de modelo, de
ponto de referência para milhões. A era das divas, dos reis da voz, se
foi. A música, arte mais democrática e mais libertária criada por nós (não
se segura a música, ela se espalha pelo ar...), está, enfim, mais liberta
do que nunca; com a internet e o acesso a tecnologias de
reprodução/apropriação (tudo pode ser "baixado"...), vem se modificando
inclusive o conceito de direitos autorais. A humanidade, quer queira, quer
não queira, assim caminha. Os acontecimentos se interligam, tudo está no
"ar", foi-se a chamada privacidade, há uma devassa pela intimidade das
pessoas, as câmeras estão por aí. Tudo virou palco. O artista brasileiro
comprometido com a invenção, com a pesquisa, tornou-se um trabalhador como
outro qualquer, batalhando por espaços oferecidos pelo poder público e/ou
organizações empresariais que acabam por dar sustento à maioria, em todas
as áreas (subvencionar artistas não seria uma forma de controle?...). Um
cantor/compositor tem múltiplas funções: planeja, produz, toca, canta,
chupa cana e assobia ao mesmo tempo... E na maioria das vezes exerce outra
profissão. Eu, por exemplo: sou funcionária pública. Não somos divinos,
nem maravilhosos... E a Arte, nunca foi tão aviltada. Somos meros
passatempos. O Brasil queria estar todo em Floripa vendo o corpo sarado e
as acrobacias da Beyoncé. RSL - O que falta para você fazer na arte poética? Quer seguir
alguma trilha? NP - Já não se faz poesia contemplando as estrelas, delirando com as
belezas da Mãe Natureza, sofrendo as penas do inferno pelo amor
inacessível... O Mal do Século também deixou de ser o eixo da poesia. Não
há água e vem secando rapidamente o poço. Não há carne e não há arcada
dentária que roa esse osso. Estamos secos, estamos sem liquidez. Tudo se
multiplica a uma velocidade nunca antes experimentada, o aparato tecnológico, a ciência,
enfim, despejam aparelhos, objetos, cacarecos que consumimos sem
questionamento; não fazemos perguntas; queremos e pronto! Os meios de
comunicação alimentam essa insanidade, toneladas de informações inúteis,
tragédias terríveis transformadas em espetáculo... Enviamos uns trocados,
alguns alimentos não perecíveis ao Haiti e vamos dormir tranquilos, sob
uma ingerência absoluta. E os automóveis vão se multiplicando; vamos nos
fundindo às máquinas, perdendo contato com a nossa vocação original de criadores, investigadores das
coisas, viramos meros processadores de informação, processadores
enlouquecidos, entupidos de batata frita, hot dog e tecnologia. As
artes no decorrer da
existência têm refletido as mudanças, as rupturas que se dão em
determinados momentos da nossa história social, política, econômica... A
Revolução Industrial, por exemplo, foi um marco explosivo, que mudou a
direção de tudo o que havia se criado, a poesia rompeu de vez com o
Romantismo; Baudelaire arrancou as estrelas do céu, e disse "não há
paraíso, não há o que conquistar...". E tivemos Cruz e Sousa e Augusto dos
Anjos que detonaram com a nossa pseudo-ingenuidade... Não seria assim?
Acontece que ainda havia tempo, digamos, pra se arrancar as estrelas do
céu, havia tempo pra questionar os paraísos artificiais... Agora não há
tempo. Tempo esgotado. Os templos desabam sobre as nossas cabeças, estamos
confinados nos shopping
centers, sujeitos a todo tipo de violência, o lixo se acumula (para
onde vai tanto lixo?), os cadáveres se decompõem pelas ruas, paira sobre
nós a ameaça de extinção... De auto-extinção. Inventamos tanto, que as
nossas invenções, as nossas armas, estão apontadas para as nossas cabeças.
Pela primeira vez o fim de tudo não é um mito.... Num momento em que
tremores de terra e massacres se transformam em espetáculo — com a nossa
cumplicidade — a sopa de letrinhas muda de figura. Que ritmo, que ordem,
que combinações, que cor imprimir às palavras? Talvez fosse preciso um
outro ABC da poesia, talvez seja preciso digerir, transformar isso tudo em
um outro material, outros símbolos, outros mitos... Uma mutação solar, por
exemplo, por mais leve que fosse, não seria nem o mito nem o mal deste
século: seria o fim. Procuram-se outras possibilidades pelo céu, outros
mundos para depredar. Mas não há outro mundo: "não dê ouvidos aos adivinhos (...) não
há um mundo a descobrir" (Pedro Maciel). Este mundo em farrapos é o
nosso mundo. Que tipo de poesia sairia de um processador completamente
saturado? E à beira da destruição? Que trilha seguir?
RSL - Como o canto influencia a poesia e
vice-versa? NP - No meu caso, tem acontecido um fato estranho: eu venho me
afastando do canto, da música, das pessoas, tenho sentido uma necessidade
absurda de silêncio, de solidão, uma necessidade de ler, ler sobre muitos
assuntos e ver melhor, tentar compreender ao menos um pouco de mim mesma,
essa vertigem. É como procurar um outro combustível, trocar os óculos,
tentar gerar uma outra perspectiva... Mas fica tudo sem
direção... RSL - Tem algum mote? NP - No momento, este poema é o meu mote: mantenho o sentimento ainda quente /
como quem carrega um coração ainda vivo / um fígado / um filho / pássaro
miúdo na concha do ouvido /vagarosa / ralentando o passo / ao menor
ruído... Tenho me sentido assim,
pisando em alguma coisa pegajosa, procurando oxigênio, levando
entre as mãos um pássaro agonizante... Que tento reanimar a qualquer
custo. Sou eu... RSL - Que pergunta gostaria que fosse feita a você?
NP - Do livro Pele & Osso:
"homens não são o que pensam / quem eles pensam que são? / não sabem de
onde vêm / nem sabem pra onde vão"... De Augusto de Campos: "Somos viventes e vampiros / a sug ar / até o último suspiro
/ a vida / vírus a sangr ar / poetas e papiros". RSL - A invisibilidade é uma ambição do poeta? Quem deve falar
mais alto: a obra ou o poeta? NP - Não é preciso ambicionar,
já nos tornamos invisíveis, estamos sem luz. Itamar Assumpção tem
um verso que diz: "você está
sumindo!"... RSL - O que deve ter um poema para que você o admire como
obra-prima? NP - Ele deve ter o poder de me causar febre, calafrios, medo e uma
vontade incontrolável de desaparecer. Por exemplo: "se as coisas fossem como tu queres /
seriam só como tu queres. Ai de ti e de todos que levam a vida / a querer
inventar a máquina de fazer felicidade". (Fernando
Pessoa) [Essa foi a última entrevista realizada por Rodrigo de Souza Leão, iniciada
em junho de 2009, publicada originalmente na Germina, em março/2010]
Neuzza
Pinhero (Arapongas/PR). Poeta, compositora e cantora.
Socióloga com especialização em saúde pública (USP). Participou da chamada
Vanguarda Paulista, com Arrigo Barnabé (Banda Sabor de Veneno) e Itamar
Assunção (Banda Isca de Polícia). Prêmio Nacional de Literatura Lúcio Lins
(Poesia, Paraíba, FUNJOPE, dezembro de 2007) com o livro
Pele &
Osso. Tem poemas publicados nas principais revistas
nacionais de literatura e internet. Atuou em trabalhos
líteros-musicais como Polivox (Rodrigo
Garcia Lopes) e Ladrão
de Fogo (Ricardo Corona). Autora do projeto litero-musical
itinerante "Profissão de Febre", iniciado em 1985, musicando poemas de
Paulo Lemisnki. Vive em Santo André/SP. Escreve o blogue Spirituals do
Orvalho [http://www.spiritualsdoorvalho.blogspot.com/]. |
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