Carlos felipe moisés: Como Anda a poesia?
Rodrigo de Souza Leão – Como você encara o cenário da poesia no
momento, Carlos Felipe? Como anda a poesia? Carlos Felipe Moisés – Acho que a poesia brasileira nunca esteve tão bem quanto dos
anos 90 para cá, a começar pela quantidade, que em si não representa
valor, claro, mas penso que é um dado relevante, e revelador de um
apetite, um interesse, uma efervescência, uma vontade de poesia, julgo eu,
sem precedente. Se essa vontade vai resultar em poesia de alto nível, não
dá para saber, parece que por enquanto ainda não. Nosso último grande
poeta foi João Cabral, que imprimiu o seu timbre forte a boa parte da
poesia dos anos 50 aos 80, podemos até falar de certa cabralização, no que
isso tem de bom e de menos bom, secundada pela hegemonia do experimento
concreto. Desde então, notáveis poetas surgiram, mas nenhum a quem fosse
atribuído papel semelhante. E esse ciclo parece que chegou ao fim. A gente
olha o panorama dos últimos 10, 15 anos e João Cabral já não é mais aquela
referência obrigatória, aquele ponto para onde convergiam quase todas as
experiências consideradas "válidas". O jeito cabralino foi deixando de ser
reconhecido como o que há de mais "avançado", "contemporâneo", "atual", e
começou a ingressar na história, como um dos ícones do passado. Um indício
forte é a variedade de tendências, uma certa aceitação da heterogeneidade,
que ganha força a partir dos anos 80-90. Hoje viceja, ao que parece, um
certo vale-tudo, um relativismo generalizado, que eu considero positivo,
apesar da quantidade de versejação simplória que passou a circular, às
vezes até com ampla aceitação. Positivo porque tem que ver com ansiedade,
busca de caminho, inquietação benigna, insatisfação etc., e isso é
garantia de que um salto adiante pode ser dado. E ao mesmo tempo é indício
de que a poesia de hoje está à procura do seu João Cabral, isto é, aquele
poeta verdadeiramente grande, cuja poesia (independentemente de
manifestos, teorias, doutrinas, programas ou palavras de ordem) nos diga:
podem parar com tudo isso, o caminho é por aqui — como aconteceu com
a proeza cabralina, para os poetas que foram surgindo dos anos 60 em
diante. Acho, em suma, que a poesia brasileira está vivendo um momento
esplêndido, de extraordinária criatividade. Eu não tenho conhecimento de
outra época em que tantos poetas tenham estreado já tão maliciosamente
céticos e amadurecidos. Pode ser que a qualidade não acompanhe a
quantidade, pode ser que haja muitos altos e baixos, muito desencontro,
mas isso ainda é positivo: entre outras coisas, é um passo largo na
direção do fim dos sectarismos, ideológicos ou estéticos.
RL – Escrever é religioso? Poesia é uma
religião? CFM – Nessa matéria pode haver um pouco de tudo, desde poetas
virtuosamente religiosos, que subordinam a poesia à fé, dogmática ou não
(como o Jorge de Lima e o Murilo Mendes de Tempo e eternidade, onde eles
pediam: "restauremos a poesia em Cristo", epígrafe que o segundo, não por
acaso, acabou por rejeitar), até poetas que, decididos a restaurar tão
somente o mito arcaico do furor poético, se dedicam à poesia com um
empenho verdadeiramente religioso, como se estivessem num seminário ou num
convento. Entre esses extremos, poetas como Guerra Junqueiro, que anunciam
terremotos tipo "a velhice do padre eterno". Alberto Caeiro diria, com
propriedade: "Isso é coisa de padres sem religião". Apesar disso, ou
justamente por isso, pode-se dizer, sim, que escrever não é, mas parece um
ato religioso, e que a poesia daí resultante não é, mas também parece uma
espécie de religião. Aparentemente divergentes, essas vias se assemelham,
e contam, como se sabe, com apreciadores em quantidade, daí seu vigor, no
rumo do sagrado ou do profano. Eu, de minha parte, prefiro apostar em
outra via, a da poesia como reduto de consciência e liberdade, busca
incessante, guiada pelo ceticismo e o relativismo, à margem das verdades
reveladas. Escrever até pode ser (para muita gente é) mas eu não acho que
deva ser algo religioso, nem que a poesia deva ser uma forma de
religião. RL – No seu recente livro Noite Nula há mais influência da
música do que da literatura? CFM – No que se refere a temas e motivos, acho que sim. O que eu
tentei realizar, na maioria dos poemas, está mais para Billie Holiday ou
Charlie Parker, por exemplo, do que para Bandeira ou Drummond, que também
estão ali, embora em escala mais reduzida. Isso tem que ver, acho, com
certo desconforto em relação à palavra, linguagem bem menos universal do
que a música, do que o grito e o sussurro, do que a mágica alternância de
silêncios entre os acordes. Mas, influência... não sei. Eu até me esforcei
para que a construção verbal, os torneios de frase, e sobretudo o recorte
dos versos, responsável por boa parte das cadências e do ritmo,
mimetizassem um pouco do gênero musical ou do músico, tomados como motivo,
em cada poema, mas não sei se consegui. O improviso baseado no esquema
mote-e-voltas, como no "Sidney Bechet"; a suavidade que de repente se
acelera, como no "Leadbelly"; a suntuosidade do decassílabo bem escandido
e rimado, mais o vocabulário precioso, como no "Carlos Gardel"... E eu
tentei a mesma coisa com a "Isadora Duncan", a "Theda Bara" ou o "Jack
Dempsey" — dança, cinema mudo, pugilismo... Mas o fato é que tudo não
passa de analogia. Quando funciona, tudo acaba virando poesia, mesmo,
literatura, que se afirma ao mesmo tempo em que se
nega. RL – Você é critico. Qual a função do
crítico? CFM – Crítica literária é a manifestação daquela curiosidade que leva
algumas pessoas, além de curtir um bom poema, a tentar entender/explicar o
porquê dessa curtição, mais ou menos como toda criança faz quando desmonta
o brinquedo, para ver como é que funciona. A criança quase sempre destrói
ou inutiliza o brinquedo, já o crítico, se acertar a mão, pode tornar o
poema ainda mais atraente. A função do crítico (que não tem por que se
manifestar antes, só depois) é colocar-se modestamente a serviço do poema,
e dos leitores que não tenham muita paciência para o desmonte, mas
apreciam quem o faça — não pelo desmonte em si, mas porque isso enriquece
a sua experiência como leitor. RL – Como vê a teoria
de Pound? Você se considera um escritor inventor ou
diluidor? CFM – Ezra Pound foi um prolífico formulador de teorias, é um dos
marcos decisivos da modernidade, essa vertente da modernidade que não acredita mais
em coisas como "inspiração", "talento inato", o "mistério da criação",
etc. e espera do poeta o máximo possível de rigor, lucidez e consciência
crítico-teórica, papel que ele cumpriu, exemplarmente. Já a classificação
dos poetas em "inventor", "mestre" e "diluidor", como toda classificação,
me parece um negócio meio dúbio — de um lado, genial, iluminador, porque
explica tudo; de outro, uma inocuidade como outra qualquer, exatamente
porque tem a presunção de explicar tudo. Os admiradores fanáticos da
fórmula poundiano esquecem que ele falou também dos "lançadores de moda",
que pensam que estão inventando alguma coisa; dos "beletristas", que
apenas almejam a condição de mestre, mas não têm o que ensinar; e dos
"escritores vulgares", que não chegam sequer a diluir coisa alguma. Se eu
me considero um inventor? Nem inventor nem mestre. Na classificação do
Pound, eu seria assumidamente um diluidor. Acho que, quando criança, não
desmontei brinquedos em quantidade suficiente, de modo que no meu
caminhãozinho só cabe um pouco, bem pouco, dessa areia toda. O que me põe
a salvo, creio, da coisa ridícula que é a pretensão a ser um lançador de
moda, um beletrista ou um escritor vulgar. RL – Harold Bloom fala de "angústia da influência". Você é
angustiado com alguma influência? CFM – A teoria do Bloom (ele fala em anxiety, ansiedade, que me parece
bem mais expressivo, não vejo por que traduzir por "angústia", que
hiperboliza a idéia e leva tudo em outra direção) acho que só se aplica ao
poeta verdadeiramente ambicioso, e com justificadas razões para isso. O
que ele quer dizer é que, mesmo neste caso, mesmo quando se trata de um
grande poeta, este é movido pela incerteza, a dúvida, a insegurança, ou
pela anxiety de "matar o pai",
isto é, superar a matriz (colocar a mãe no meio acho que deixa tudo
freudianamente um pouco mais interessante) de onde a sua arte provém. E
disso ninguém escapa: todo poeta, grande ou não, ambicioso ou não, aprende
com outros poetas. O curioso da teoria do Bloom é mostrar que a grandeza
do poeta é diretamente proporcional à anxiety. No meu caso, embora tenha
chegado a sonhar um pouco, na adolescência, meio século atrás (nessa
altura, sonhar com isso é vital), nunca cheguei a acreditar que fosse
capaz de criar grande coisa, ou de "inventar", como diria o Pound. Por
isso, desde muito cedo assumi ou aceitei as influências que fui recebendo,
a começar por Mário de Andrade, Pessoa, Drummond, imitei-os e continuo a
imitá-los, sem que isso me fira o ego, de modo que influência, para mim,
nunca foi motivo de ansiedade e muito menos de angústia.
RL – Quais os livros fundamentais que um crítico não pode deixar
de ler para exercitar a crítica? CFM – Eu não sei se existem os livros fundamentais que todo crítico deveria ler. Assim
como o poeta vai apurando o seu gosto, vai experimentando o que melhor se
adapta à sua personalidade, a partir das influências que receba (e os
caminhos são inumeráveis), assim também o crítico deve ir fazendo a mesma
coisa. Só acho, e aí estou remando contra a corrente, que a crítica vem
antes da teoria, isto é, não acho que o crítico deva eleger uma teoria
para depois sair criticando, o que no geral induz a pessoa a julgar que
está dispensada de ler toda a literatura possível, antes de pensar em
criticar, como se bastasse adotar o modelo teórico de plantão e dar o caso
por resolvido. Acho também que seria mais fácil apontar os livros que o
candidato a crítico não deve
ler: aqueles dos críticos e teóricos arrogantes, pernósticos, palavrosos,
que ou não têm nada a dizer, ou não são capazes de esconder que se
consideram muito mais importantes do que esses pobres diabos, os poetas e
ficcionistas, aos quais eles, às vezes, de má vontade se referem. No meu
caso, os críticos que eu sempre li com imenso prazer e proveito, e que me
ajudaram a compreender qual pode ser a função da crítica, são Maurice
Blanchot, Northrop Frye, Ernst Robert Curtius, Albert Béguin, Augusto
Meyer, Antônio Cândido... Mas não sei se servem para todos os críticos e
para todas as formas de crítica. RL – Com quantas metáforas se faz um
poema? CFM – Eu não teria muita dificuldade em dizer, diante do poema pronto,
de quantas metáforas ele é feito. Há casos em que é uma só, outros em que
são várias, outros ainda em que é nenhuma. Isto seria um modo de dizer
como o poema é. Agora, com quantas metáforas se faz um, eu não sei dizer,
porque isto seria definir, antes que o poema chegue ao papel, como este
deve ser. "Metáfora” é só um dos muitos recursos à disposição do poeta,
que ele vai utilizar, ou não, com imensa embora não total liberdade. Na
verdade, "metáfora" é só uma etiqueta, aplicada pela crítica ou pela
retórica, a uma das múltiplas formas de expressão inventadas ou
reproduzidas pelo poeta. Se, quando se dispuser a escrever um poema, o
poeta ficar muito preocupado com metáfora ou não metáfora, e quantas, e
assim por diante, o risco é não fazer nada, ou produzir um irrelevante
apêndice de algum manual de poética&retórica. RL - Como vê os que
dizem que falar sobre poesia é o futuro da poesia? CFM – Uma bobagem, além de ser um contrasenso primário. Se a poesia
morrer (morte que vem sendo anunciada e desmentida pelo menos desde a
metade do século XIX) nós vamos ficar falando sobre o quê? Isso tem que
ver, claro, com a questão da exigência de lucidez e senso crítico, de
parte do poeta (como já foi mencionado, a propósito do Pound), tem que ver
com a questão da poesia da poesia, um dos marcos distintivos da
modernidade, que leva todo poeta, de um modo ou de outro, a "definir" o
que é poesia, o que é ser poeta, já que em nossa cultura a definição
milenar se diluiu ou se esgarçou, já não é mais uma unanimidade. Para
confirmar o que eu já disse antes, a poesia está aí, firme, forte,
pujante, vivendo um momento de notável ebulição, e o que eu acho, se for
para falar em "futuro", é que a poesia vai reconquistar (o processo está
em marcha) todos os leitores comuns, que veio perdendo nos
últimos 150 anos, e conquistar muitos mais. Esse negócio de que só poetas
lêem poesia é uma leviandade, coisa de gente ignorante ou de poeta
excessivamente vaidoso, que adoraria ser lido por todo mundo. Mas é o que
vai acabar acontecendo. O futuro da poesia é continuar mineiramente aí
onde sempre esteve, e cada vez melhor. RL – Qual a importância de José Paulo Paes na sua obra e para a
poesia em geral? CFM – O Zé Paulo foi uma figura decisiva na minha formação. Eu o
conheci em plena adolescência, quando já tinha publicado meu primeiro
livro, aos 17 anos, e sonhava, sonhava para valer. O Zé me ajudou a ir
pondo os pés na terra, jamais por meio de conselhos ou admoestações
(matéria para isso ele teve, farta), mas pelo exemplo. Convivemos, com
imenso proveito, literário e humano, para mim, ao longo de mais de 30
anos. É um dos meus mestres, é um dos grandes mestres de todos nós, de
toda a poesia brasileira — cada vez mais atual, mesmo tendo silenciado há
mais de dez anos. RL – Cada vez mais o poeta escreve para outro
poeta? CFM – Alguns, é verdade (eu não saberia dizer quantos), escrevem mesmo
para outros poetas, mas muitos, creio que em maior número, escrevem para
todos os leitores, e não seria justo privar o poeta da sua concomitante
condição de leitor. O fato fundamental, acho, é que o poeta escreve,
ponto. A quantos e a quais tipos de leitores sua poesia vai atingir, isso
corre por conta das contingências, do imprevisível. Enfim, para tomar a
pergunta ao pé da letra, não acho que os poetas escrevam cada vez mais
para outros poetas. RL - Por que livros
de poesia não vendem? CFM – Aprendi com Nelson Rodrigues a desconfiar das unanimidades; essa
(poesia não vende) é uma delas; logo, não é verdade. Poesia vende, sim,
estamos cansados de saber disso, embora certa "tradição", ao mesmo tempo
viciada, comodista e apocalíptica, prefira repetir o velho clichê, que só
serve de desculpa para editor que não sabe lidar com o poeta estreante,
que venha bater à sua porta. Mas repare como qualquer editor ri de orelha
a orelha, quando se fala em publicar Vinicius, Pessoa, Drummond, Quintana,
para não mencionar os monstros sagrados, do século XIX para trás. Poesia
só não vende quando não é posta à venda, nos lugares certos, no momento
adequado e da maneira correta — e isto não deve ser confundido, julgo eu,
com a pirotecnia das estratégias mercadológicas, dessas utilizadas para
vender qualquer popstar, qualquer porcaria televisiva ou um novo modelo de
soutien. Poesia não pode nem deve competir com sabonetes, com esta ou
aquela marca de cerveja ou com a Loira do Tchan. Mas que vende,
vende. RL – Tem algum mote? Alguma epígrafe que o acompanhe pela
vida? CFM – Epígrafe para toda a vida? Tenho, sim, embora nunca a tenha usado
literariamente. Mas o que sou, ou venho tentando ser, vida e obra, tem que
ver com uma frase, que eu ouvia de meu avô, desde os meus 5-6 anos de
idade, e que nunca soube o que queria dizer (venho tentando compreendê-la
até hoje): "Tudo o que tem preço é
barato". RL – Qual a diferença entre o papel do crítico e o do poeta, para
a literatura e para o mundo? CFM – O poeta é imprescindível, o crítico, não. Mas se for possível contarmos com os dois, tanto melhor, para a literatura e para o mundo.
[Publicada
originalmente na Germina,
em março/2009]
Carlos Felipe
Moisés (São Paulo/SP, 1942). Poeta, estreou com A
poliflauta (1960), a que se seguiram, entre outros, Carta de
marear (1966), Círculo imperfeito (1978), Subsolo
(1989), Lição de casa (1998) e Noite nula (2008). Publicou
também vários volumes de crítica literária, entre os quais O poema e as
máscaras (1981), Poética da rebeldia (1983), O desconcerto
do mundo (2001) e Poesia e utopia (2007). Tradutor (J.
Campbell, O poder do mito; M. Berman, Tudo o que é sólido;
J.-P. Sartre, O que é a literatura?), autor de livros
infanto-juvenis (A deusa da minha rua, 1996; Conversa com
Fernando Pessoa, 2007, Prêmio FNLIJ), é formado em Letras Clássicas
pela USP, onde lecionou, assim como na Universidade da Califórnia
(Berkeley) e outras instituições, no Brasil e nos EUA. Vive em São Paulo,
onde se dedica à coordenação de oficinas
literárias. |
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