iosif landau: literatura não é sopa
Rodrigo de Souza
Leão
©cristina carriconde Rodrigo Leão – Iosif Landau,
você tem influência de outras artes em sua literatura? O cinema noir é uma
influência? Iosif Landau
- Outras
artes? Influenciaram minha literatura? Com certeza, conhecia bem essas
outras artes. Boêmio, margeei com malandros, pilantras, policiais
biscateiros, prostitutas, na Cinelândia, na Lapa, na Praça Mauá, em
Copacabana, templos e sacerdotes das artes repugnantes. Falo das décadas
de 40, 50 do século passado. Hoje se eu me enfiasse nessa meleca urbana,
estaria morto ou então gramaria no xilindró. E por quê? Naqueles tempos,
às outras artes também pertenciam a amizade, a lealdade, a camaradagem e
até a pureza no amor pago, nada de violência, covardia, tóxico pesado, a
putaria era limpa, uma porrada ali, acolá, tudo bem, a gente vivia, não
machucava, nem se machucava. As Sete
Artes da era moderna — Música, Dança, Pintura, Escultura, Literatura,
Teatro e Cinema —, coloco sob um único guarda-chuva, chamado Cultura. Quem
pretende ser escritor tem de ser culto, tem de ser mesmo, é dogma e ponto
final, a Literatura Eu,
pessoalmente, e baseado no sublime axioma de Nelson Rodrigues do "óbvio
ululante", afirmo que só existe uma arte, o CINEMA, ele engloba as demais,
pois não? O cinema
noir, meu endeusado cinema noir ou film noir, é a linha mestra dos meus
romances. O film noir é um rótulo francês para um gênero de filme
americano, os franceses observaram a semelhança que existia entre os
filmes americanos da década de 1940 e o "romance negro", denominação dada
aos romances policiais "nova geração", editados numa coleção chamada
"noir". A técnica usada nesses filmes era a iluminação sombria, que
permitia ao espectador antever uma ação noir, a ambientação era mais
importante que o ator. A presença da noite e das sombras no filme imprimia
o tom fatalístico e de desesperança, o enredo complexo, desconexo e
fragmentado acrescentava-se ao mal-estar, os flashbacks muito usados
enfatizavam a sensação do "tempo perdido" e desespero, a narração na
primeira pessoa evocava um passado nebuloso irrevogável, um destino já
traçado. Esse gênero de filme dava impressão de um mundo-prisão, de um
mundo de solidão. O film
noir apresenta-nos dois tipos de mulheres, a prostituta ou a "santa". Nele
aparecem as duas, a mulher fatal e a virginal, e as relações familiares
não são normais, a família tradicional, em que o sexo se esconde, em que o
homem domina a mulher, em que a mulher é a mãe submissa. No film noir a
família é perversa e pervertida, o casamento é uma chateação, estéril e
sem sexo, os cônjuges procuram satisfação fora do casamento, não apenas no
sexo, mas como uma tentativa de fugir à rotina, o que redunda muitas vezes
em morte ou autodestruição. A mulher
fatal no filme noir é o personagem principal, é sedutora, é poderosa,
ambiciosa, independente, promíscua, inteligente, narcísea, às vezes, é
rica e foge ao domínio do homem, representa um perigo para o sexo
masculino, um perigo para o sistema patriarcal, portanto, torna o homem
inseguro e terá que ser punida, nos filmes é ela quem domina os olhos da
câmera, mas no fim é destruída, perde seus encantos
físicos. O
personagem masculino no film noir, na maioria das vezes, é um detetive
particular ou um sujeito rejeitado socialmente, por vezes amnésico,
desiludido e alienado. Esse cara durão é solitário, anti–social,
angustiado, vive e trabalha no ambiente sombrio e assustador das grandes
cidades, perto do meretrício, em edifícios semi-abandonados, tem o dom da
ironia, seu mundo é dominado pelo crime, corrupção e crueldade, vive num
mundo de pesadelo, onde lhe é proibido demonstrar emoção para se mostrar
bem macho, o tough guy tem de
viver em ação constante, contemplação e emoção são coisas de mulher, nem
pensar em casar e constituir família, ele é um "ninguém". Fascinado pela
mulher fatal, sua vida é claustrofóbica, rejeitado pela sociedade do bem,
rejeitado pela boa mulher, sua sexualidade é ambígua, homossexualidade nem
sonhar, ele é misógino, não se prende emocionalmente nem sexualmente à
mulher, tem como amigos outros homens, a vida é muito dura para
ele. O film
noir pode ser apenas um modismo cinematográfico, mas também espelha a
perspectiva da existência humana na sociedade, o confronto com o lado
obscuro, a perda da inocência, a decadência. Os personagens são
prisioneiros do destino, o ingresso da mulher no mundo masculino
desestabiliza o mundo masculino, o mundo de pós-guerra, como apresentado
no film noir, é ainda muito atual, muito mesmo. Os
primeiros film noir foram baseados nos romances de Raymond Chandler,
Dashiell Hammett ou James Cain. Os intérpretes masculinos eram Robert
Mitchum, Fred MacMurray, Humphrey Bogart e os femininos, Mary Astor,
Verônica Lake, Bárbara Stanwyck, Lana Turner. Muitos film
noir foram editados por Hollywood, a lista é imensa, mas eu destaco seis.
O Falcão Maltês, considerado o
pioneiro, com Bogart e a dupla sinistra Peter Lorre & Sidney
Greenstreet, e Mary Astor. A Gun
for Hire, o primeiro filme de Alan Ladd e talvez seu melhor papel,
contracenando com Verônica Lake. A
Dama de Xangai de e com Orson Welles, em que ele introduz a sala de
espelhos com o vilão sendo caçado nas suas inúmeras figuras repetidas,
Rita Hayworth, a mulher fatal. Double Indemnity com Bárbara
Stanwick, soberba. O Destino Bate
na Porta, com John Garfield, esplêndido ator, desaparecido
prematuramente, e Lana Turner. Os
Assassinos, o primeiro filme de Burt Lancaster, baseado no
extraordinário conto homônimo, de Hemingway. The Asphalt Jungle, com Marylin
Monroe no seu primeiro papel de destaque, e com Sterling Hayden, admirável
ator, muito injustiçado pela indústria do cinema. Por volta de
1959 o film noir desapareceu, não havia mais espaço para esse tipo de
filme. O que escrevo
segue a filosofia do noir, tanto do filme como do romance, o difícil é
reproduzir o ambiente e o comportamento dos personagens numa paisagem
tropical como a do Rio de Janeiro. RSL - No livro Memória Tumultuada você nos conta
memórias da Romênia, na época da Segunda Guerra Mundial. Como você viveu
esta Guerra? IL - Nasci de uma família judia,
no dia 30 de abril de 1924, em Bucareste, Romênia. Em 1918 terminara a
Primeira Guerra Mundial, com a Alemanha derrotada. A Romênia lutara ao
lado dos vencedores e por isso foi beneficiada com a incorporação da
Transilvânia e Bessarábia ao seu território, mas uma condição fora
exigida: a emancipação dos judeus nascidos no país. O
anti–semitismo é uma praga que domina a humanidade há séculos, mas o Leste
Europeu era o mais violento e a Romênia, um dos piores. Antes de 1918 o
judeu nascido na Romênia era considerado estrangeiro, sujeito à
naturalização. Mesmo depois de 1918 o anti–semitismo romeno não cessou,
mas com a nova cidadania e o término das restrições, houve melhoria
substancial para os judeus. Alguns fizeram fortuna, outros tiveram bons
empregos, médicos e advogados judeus se tornaram
famosos. Meu pai
enriqueceu como comerciante e industrial. O dinheiro (quem não sabe que
dinheiro é poder?) permitiu–lhe ter acesso aos políticos, dirigentes,
donos do poder. Ele freqüentava os clubes da alta sociedade, era
habilidoso, simpático, alegre, conseguiu fazer amizade com muitos não
judeus. Eu levava uma vida de príncipe, só senti o anti–semitismo no
colégio: numa turma de 60 éramos seis judeus. Tapas, deboches, quase
diários, alguns reagiam, como eu, outros não, mas nada que assustasse
demais.
A
Segunda Guerra Mundial nada mais foi que a continuação da Primeira, o
Pacto de Versailles, depois da derrota da Alemanha, asfixiou por completo
aquele país, era apenas uma questão de tempo para que surgisse um
"salvador", que reerguesse o orgulho germânico, que desafiasse aquele
Pacto impossível. Infelizmente, o "herói", para dominar o povo alemão,
para se tornar politicamente forte, escolheu o anti-semitismo como
bandeira, fato que não assustou em nada o resto da Europa. Os judeus já
eram perseguidos há séculos e o rastilho do nazismo espalhou-se com imensa
velocidade. É
interessante mencionar que a Alemanha nunca fora anti–semita e que os
judeus ali nascidos consideravam–se alemães autênticos, mas Hitler
conseguiu convencer que os judeus eram culpados pelos males que afligiam o
povo germânico. Deu certo para ele. Com o
advento do nazismo na Alemanha, o anti–semitismo aumentou sua virulência.
Nos moldes da facção nazista alemã, surgiu, em Ironicamente, podemos
admitir a "sorte". A solução final de Himmler não atingiu os judeus
romenos, entretanto, nas províncias de Bucovina e Bessarábia inúmeros
judeus romenos foram trucidados, certamente, devido a vários fatores
predominantes: o anti–semitismo enraizado nas tropas romenas e
potencializado pela presença de tropas alemãs e do comando alemão, como
também a atuação das polícias romenas e das autoridades regionais
dominadas pelo ódio. 300 000
judeus morreram ao todo, vítimas de atrocidades. Em 1938, fui
estudar na Inglaterra num colégio particular perto de Londres, na cidade
de Reading, em
lugar um pouco afastado e localizado num vilarejo chamado Maiden Erlegh,
portanto, Maiden Erlegh School. O
colégio funcionava numa típica propriedade rural de nobre inglês, o
edifício principal era um primor de arquitetura do século 18. Nos
dormitórios havia acomodações para dois; salão de recreio e jogos; salão
de refeição cinematográfico: tudo emanava história e tradição anglicana,
tudo nobreza. A propriedade era imensa. Campo de futebol, rugby, hockey
sobre grama, quadras de tênis, bosque e lago, campo para o jogo de pólo a
cavalo, piscina coberta e aquecida, um colégio para
milionários. Fiquei
ali por mais de dois anos, onde aprendi a gostar da literatura, fiz
amizades com gregos, indianos, belgas e até ingleses, participei de
esportes — era titular do time de futebol, rugby e remo (o Tâmisa por
perto). Esbanjei dinheiro em Londres, onde, nos fins de semana, residia na
embaixada romena (o filho do primeiro ministro era meu amigo), vestia-me
do bom e do melhor das lojas de Bond Street, vivia em farras nos arredores
de Picadilly Circus, fui muito feliz naqueles
tempos. No
verão, encontrava-me com a família na França, numa estação de águas. Não
pretendo alongar-me muito, usem a imaginação: um príncipe, um afortunado,
um ser abençoado. Em 1938,
agosto, ameaça de guerra. Chamberlain viaja para Munich, para encontrar-se
com Hitler, a minha família estava em Aix les Bains, a França decretou mobilisation genérale. Pânico,
debandada geral, viajamos para Paris num trem superlotado, em Paris a
família decidiu voltar para Bucareste e eu voltei para o colégio
inglês. 1939,
Hitler invade a Polônia, declaração de guerra Eu saio
do colégio, hospedo-me em Londres, no Cumberland Hotel, onde aguardo o dia
de minha partida para o Brasil. Numa noite de agosto, ouço o silvar de uma
bomba, que atinge o metrô em frente ao hotel. Assustador, os feridos do
metrô são levados pro hall do hotel, pavoroso. Agosto, setembro, a Batalha
da Inglaterra, bombas e mais bombas. Em dezembro, embarco de Southampton,
no Andalucia Star, a travessia do Atlântico leva sete dias, chego ao Rio
na noite de 17 de dezembro. Fim de
uma época, início de outra. C'est la
vie! Uma merda! Deixei
para trás minha infância, parte da minha adolescência, amigos, primos,
avó, tias, lar, cidade natal, felicidade, o passado enterrado para sempre.
Nunca mais serei o mesmo, renascer é doloroso, até hoje dói.
Muito. RSL - Como surgiu o Comissário Alfredo?
IL - Para responder, eu teria
que recontar minha vida, o que é impossível e indesejável, portanto, parto
de um ponto qualquer e vamos ver o que dá. Primeiro, vamos esclarecer
algo, vamos falar dos tipos de inteligências: lingüística — talento com as
linguagens escrita e falada; lógico-matemática — talento para
o raciocínio, facilidade em lidar com números; visual-espacial — especial para
lidar com a imagem, para decodificá-la, inclusive; musical: facilidade para
identificar sons; corpórea
— o corpo é a ferramenta, o que vale para atores, atletas; interpessoal — boa no
relacionamento com as pessoas: conhece bem o outro e sabe como tirar de
cada um o que precisa; intrapessoal — pessoa que se
conhece muito bem, tendo capacidade de auto-motivação. Elimino, no meu
caso, as seguintes: lógico-matemática, visual-espacial,
musical, corpórea, interpessoal. Restam, então, a lingüística e a intrapessoal, ou
seja, tenho facilidade de me expressar e sou
teimoso. Vocês
vão dizer, "mas como, se você foi engenheiro e trabalhou na profissão
durante quase 40 anos?". Pois é, imposição paterna, mas vamos deixar o
Freud de lado. Dizem
os esotéricos que quem deseja muito algo e persiste no desejo faz com que
ele "aconteça". Pois eu persisti durante quase 50 anos e aconteceu, mas
aconteceu não por minha vontade, aconteceu por causa da filhadaputice de
outros. Colocado na "geladeira", por desagradar um poderoso sacana e
covarde, fiquei sem função no meu último emprego, aos 70 anos. Continuei
com o bem montado escritório, secretária e sem o que fazer. Passava o
tempo lendo, naquela época, me apaixonara pelo Bukowski, li tudo em
português e Num
dia qualquer, peguei o jornal, abri nos classificados, nem sei por que, e
vi um anúncio: um fulano de tal procurava novos escritores para editar uma
coletânea. Peguei meu caderno, fui à cidade, entrei no escritório
mambembe, falei com o cara, deixei o caderno ali, dez dias mais tarde ele
me telefonou, escolhera dois poemas, paguei algo em torno de 50 reais, um
mês mais tarde a coletânea estava editada, noite de autógrafos na Laura
Alvim, distribuí convites, a família compareceu, compareceu também a irmã
de um amigo, impossibilitado de estar presente, tudo era festa e eu,
superfeliz. Uma
semana mais tarde a irmã do meu amigo me telefona e me convida para
participar da oficina literária de Flávio Moreira da Costa. Topei de
saída, e dela participei por três anos, apresentando muitos contos,
assimilando o aprendizado, aceitando críticas, reescrevendo, críticas e
mais críticas, nenhum elogio. Flávio é um cara durão, seco, honesto, nada
de paparicos. Durante aqueles três anos, entraram e saíram inúmeros
pretendentes a escritor, apenas minha amiga e eu permanecíamos. Eu já era
craque no computador, nenhuma dificuldade, nem desculpa para deixar de
escrever. Como
já disse, eu era gamado pela literatura noir, filme noir e agora também
pelo road movie, lembrei–me da Route 66 um seriado duca, lembrei–me de
todos os livros, de todos os filmes. Não sei em que dia, nem que mês, nem
mesmo o ano, talvez fosse aos 72 ou 74 anos, não sei. Eu queria escrever
um roman noir misto de road novel, escolhi o nome de Alfredo em homenagem
ao meu compadre também Alfredo e também comissário. Iniciei a digitação,
não tinha nenhum roteiro em mente, imaginei o dito comissário morando no
pior trecho de Copacabana, na Prado Júnior, e lá fui eu construindo o
personagem, um fato real de uma vida real, contado por um amigo indicou-me
a linha mestra, leituras e vivências ressurgindo, levei 20 dias pra
terminar, direto, sem pausa, as idéias surgiam com uma facilidade
incrível, assustadoras, a parte da road novel era fácil, eu conhecia bem a
região, tendo trabalhado muito por lá. Nem
fiz revisão, coloquei tudo na impressora, encadernei tipo espiral, e
mandei pro Flávio ler. Estava confiante, sentia que o caminho estava
livre, estava feliz, era o meu primeiro livro. Flávio
devolveu-me o volume com as seguintes palavras escritas na primeira
página: "Agora posso te chamar de colega, parabéns". Flávio é um
cara superlegal, introduziu-me na Record, aceitaram editar o livro, tive
que pagar 3000 reais naquela época, mas valeu, a editora fez a divulgação,
apareceu resenha no Jornal do Brasil, comparando-me ao Rubem Fonseca,
apareci na TVE, vendi 800 exemplares, recuperei o capital e fiquei com um
pequeno lucro. Escrevi outros
livros, nenhum teve o sucesso do Comissário Alfredo, durma–se com
um barulho desses. Cansei de batalhar atrás de outras editoras, cansei de
me autopromover na Internet em blogue e listas literárias, mas ainda não
cansei da esperança. Grande
Alfredo, meu abraço! RSL - O que deve ter um bom
romance policial? IL - O romance policial é
antigo, consideram Edgar Allan Poe o primeiro escritor do gênero, com o livro The Murders in the rue Morgue e,
atualmente, o mais badalado é Dennnis Lehanne com o Mistery River, passando por Agatha
Christie, SS Van Dine, Elroy, Chesterton, Conan Doyle, Chandler, etc.,
etc., estilos e épocas diferentes, mas sempre o crime, a vítima, os
suspeitos, o mistério, o detetive e o criminoso. Escrever
um romance policial, de certa forma, é igual a escrever qualquer gênero.
Tem que ter trama, ambientação e personagens, mas um romance policial tem
que ter algo mais, para que desperte o interesse do leitor. Esse algo
mais, a meu ver, é a estrutura do herói, que pode ser um policial, um
investigador particular ou até um indivíduo
qualquer. O meu Comissário Alfredo foi construído
com vários componentes, algo dos detetives do roman noir, também
algo que vi nos tipos que conheci, algo dos policiais amigos, e muito de
mim. E por que eu? Por que eu possuo traços característicos que compõem a
personalidade quase esquizofrênica do (anti) herói: solidão, tensão
permanente, coragem física, traços de marginalidade, fatalismo, um laisser faire desenfreado, gosto
pelas prostitutas, perigos vividos, etc. e tal. Nos
romances policiais pioneiros o trama era complexo, ia, vinha,voltava,
entrava num labirinto, todos se perdiam, menos o investigador. O livro
sempre terminava com uma reunião, onde o detetive explicava com detalhes
tudo o que acontecera e, no final, apontava o
culpado. Isso
mudou nos romances noir, a trama era simples, quase óbvia, o que
interessava era a ação, o detetive enfrentava tiros, surras, superava
tudo, e quase a muque, agarrava o criminoso, fosse homem ou
mulher. A
tendência hoje é voltar a complicar, acrescentando idéias tiradas da
sociologia, da psicanálise, fazendo análise do passado dos personagens,
excesso de cultura, muita descrição ambiental, o livro cansa, foge do que
interessa, entedia, não gosto. Nem sempre é preciso desvendar a trama,
como acontece no livro The Black
Dahlia, escrito por James Elroy, que eu considero o melhor livro noir
publicado até hoje. Como já
falei, o que interessa é a ação, a aceitação total e absoluta do
personagem principal, o que ele é, como ele atua, o que pensa, o que faz e
como faz. É isso aí, o que eu acho. RSL - Quais ingredientes
literários deve ter um livro seu? IL - Ingredientes?! Os de um
molho de salada são o azeite, as ervas, o vinagre, o sal, e assim por
diante. Os de um remédio são detalhados na bula. Mas os ingredientes de um
trabalho literário?! Minha lógica me cutuca e diz: fala que não sabe, é
uma resposta simples e honesta. Literatura não é sopa, molho
ou remédio, não tem nada de material, mas tem palavras, e as palavras são
os ingredientes que compõem o prato final. Para esse prato ter paladar
agradável, ser apetitoso, as palavras devem ser bem colocadas, compor
frases, e as frases devem emitir pensamentos, abalar sentimentos, fazer
sorrir, rir e chorar. Tecnicamente falando, a gramática tem de ser
perfeita; a pontuação, aceitável; a fluência, carinhosa. Falta algo mais?
Com certeza, o leitor sabe o quê. Bom,
segundo Hemingway, livros devem ser escritos para serem lidos, portanto,
que tal definir o leitor de hoje? Está claro e comprovado que as grandes
leitoras de hoje são as mulheres, a literatura estritamente feminina
acabou, aquela xurumela de amores impossíveis, de sonho e luar, de
pornografia infantil acabaram e outras superficialidades idem, a mulher
hoje tem profissão de grau superior, posição empresarial, está a par da
política, conhece cinema a fundo, vai ao teatro, participa de tudo e com
tudo da vida social, tem opinião própria bem sedimentada e a emite sem
receio, vida sexual livre, independe do homem, é totalmente independente,
é a cabeça da família, é crítica feroz, não perdoa, mata! O que não
significa que o homem virou um analfabeto, mas em termos de gosto
literário não há mais distinção. E os ingredientes? Acho que me perdi, mas
valeu como homenagem à mulher. No meu
caso, uso ingredientes (recursos) que surgem com facilidade, nada
estudado, nada copiado dos outros, minha leitura assídua, com certeza,
calcou no meu subconsciente muito dos demais
escritores. Não
exagero nas descrições dos ambientes, dos personagens, o leitor terá o
suficiente para completar a imagem. Uso pouco o ponto, muita vírgula, colocada estrategicamente
(minha respiração comanda), pretendo deixar o leitor sem fôlego, quero
forçar a continuidade da leitura, introduzo bastante o diálogo (aprendi
com mestre o Hemingway) que é incisivo, curto, brutal, às vezes, uso
bastante os pensamentos subjetivos mudos, emitidos pelos personagens,
abuso um pouco da cultura, pretendo que o leitor fique curioso e procure
mais informação, nunca defino o final com clareza, o leitor tem de ser
cúmplice, ele que o decida. Nada
mais a dizer, meu amadorismo pára por aqui. RSL - Você é poeta também.
Você é um poeta beat?
Já
mencionei o Bukowski, já falei dos poetas românticos ingleses (Tennysson,
Browning, Shelley, Keats, Byron), li Rimbaud, Ezra Pound, Elliot, Walt
Whitman, Bandeira, Drummond, Quintana, e muitos outros, não posso
honestamente afirmar que gostei, amei ou adorei, achei apenas
interessante. Quando
li o On the Road, de Kerouac,
tomei conhecimento dos beat,
parti pro Uivo e Kadish de Ginsberg, gamei,
adorei. Vale
comentar sobre os beats,
algumas curiosidades que descobri por aí, pesquisando na
Internet: – quando
Allen Ginsberg adentrou a Six Gallery, há 50 anos, e declamou a primeira
parte de Uivo (Howl), os
beatniks moviam-se em bando para a costa-oeste americana. Os poetas
caçavam um país diferente, menos materialista e menos conservador. O
ulular noturno era aditivado por benzedrina, jazz e sexo. No galpão
disfarçado de galeria, Ginsberg não podia prever que as dezenas de versos
onomatopéicos e delirantes, lidos com voz e pensamento ébrios, seriam o
ponto de partida a alçar os beats à condição de celebridades
locais; - os uivos pouco depois
ultrapassariam os limites da cidade de São Francisco e ganhariam estradas
e imortalidade literária. O poema apregoava a liberdade sexual em
"intermináveis orgias, incomparáveis ruas cegas sem saída". Denunciava os
horrores de um país militarista, repleto de radicalismos políticos,
"protestando contra o nevoeiro narcótico de tabaco do capitalismo, que
distribuíram panfletos supercomunistas - Ginsberg é o grande poeta
americano depois de Walt Whitman, só que em vez de afirmar os ideais
democráticos, o beat denunciou
as falhas dos sistema, de uma América belicista e
conservadora; - Ginsberg, George Corso,
William Burroughs e Jack Kerouac foram os primeiros artistas de
comportamento alternativo, pioneiros ao retratar a costa-oeste quando o
chique era estar - o termo beat, para Ginsberg, uma
experiência transcendental e revolucionária, "um entendimento do que
acontece no lado mais negro da alma", foi inspirado na expressão que
Herbert Huncke — um traficante e michê amigo dos escritores — usava.
Kerouac logo percebeu o caráter polissêmico da palavra, que além de
significar "estar ferrado", no I'm
Beat lembrava a batida do jazz. Pode ser interpretada como pulsar ou
espancar; - a transgressão e o
coloquialismo renderam críticas que classificaram os textos como
pornográficos ou excessivos e que até hoje ofendem alguns
escritores. Comprei as obras completas
de Ginsberg, de Ferlingheti, Corso e outros, li tudo de cabo a rabo e caí
como um sonâmbulo na cultura beat, escrevi dias e dias,
ininterruptos, pessoalmente, acho que alguma "coisa" foi boa, diria até
excelente: apresentando o trabalho em listas literárias, recebi elogios,
no meu extinto blogue fizeram sucesso. Acho o verso livre rico,
sensacional, com ritmo e pulsação, mas devo reconhecer que como poeta não
"colei", parei, não tentei mais, faz três anos que deixei de ser
poeta. RSL - Como é o seu processo
criativo? IL - Bom, já contei como
estruturo meu livro, como componho meu personagem principal, e outras cositas más que, de algum modo,
respondem à pergunta. Tentarei completar. Pra
início de conversa, não concordo com o conceito de que "escrever é 90% de
suor e 10% de inspiração". Sei que tem escritor que é disciplinado, tem
horário de "trabalho", tenha ou não tenha inspiração, grama em frente do
computador ou em cima da máquina de escrever e tenta a continuidade, sua,
sua mesmo. Eu sou um cara atento, presto atenção aos diálogos de rua, assisto a muitos filmes, de repente, surgem frases ou pensamentos que me chamam a atenção. Não tomo nota, mas também não esqueço, fica tudo catalogado em minha mente. Num dia qualquer me surge uma idéia prum conto, prum romance, surge daquilo arquivado em minha cabeça, vou ao computador, começo a escrever, e não paro mais, vou desde a manhã até altas horas da noite, dias seguidos, entro por um caminho, pego outro, aumento a importância de um personagem, introduzo outro, navego nas asas da imaginação, elimino, acrescento, mudo, retorno num frenesi incontrolável, dias depois, semanas mais tarde, coloco o ponto final. Não descanso, releio, modifico, corrijo, deleto, transfiro frases inteiras (bendita informática). Faço isso vezes seguidas, mas tem um determinado momento que dou um stop. Deixo tudo descansar durante uns dias e volto, mais releituras, correções e, finalmente, considero a tarefa cumprida. C'est fini. RSL - Você se considera um
escritor profissional? Você é capaz de escrever sobre
encomenda?
RSL - Quais os escritores
que fazem a sua cabeça? IL - Hemingway, por ter sido o
maior contista da era moderna, o maestro do diálogo. Rubem Fonseca, por
ter tirado do marasmo a literatura brasileira. Camus, por ter se
preocupado com o drama do ser humano. Elias Canetti, por ter me levado à
época do iluminismo do período áureo de antes guerra, a primeira, em seus
livros autobiográficos. Raymond Chandler e Dashiell Hammett, os criadores
do novo romance policial. Jack Kerouac, que me despertou para a literatura
beat. Philip Roth, por ser o maior talento literário da atualidade. Dalton
Trevisan, pela sua escrita minimalista e irreverente. Paul Auster, pela
sua erudição e polivalência, romancista, poeta, ensaísta, tradutor,
cineasta. Isaac Bashev Singer, escritor judeu que nos seus romances mantém
vivas as tradições judaicas. Amos Oz, por ser o maior escritor israelense
do momento, internacionalmente aplaudido. Yehuda Amichai, poeta israelense
que adotou o estilo beat.
Clarice Lispector, enorme talento, mulher bonita e sofrida. Graciliano
Ramos, grande talento nordestino. Nelson Rodrigues, romancista do subúrbio
e inovador do teatro brasileiro. Mário de Andrade, por causa de
Macunaíma. RSL - Quem é o escritor
brasileiro? IL - Será que existe o escritor
brasileiro? Se pegar a lista dos 10 livros mais vendidos, nos jornais e
revistas quem aparece? Só gringo traduzido. Paulo Coelho não é escritor
brasileiro é escritor do Brasil, deu pra sacar? Os
escritores brasileiros que conheço são os que eu chamo de escritores
"underground". São os caras que escrevem para ser lidos por poucos, ou não
ser lidos. As editoras não apenas não os publicam, como nem se dignam a
ler seu trabalho, rejeita-os e somem com os originais, os caras gastam
tempo, suam, batalham, empatam grana e são desprezados. Ele, o escritor
brasileiro, às vezes recorre às editoras virtuais, que em termos de
prestígio, divulgação e venda nada significam. O e-book é um recurso, o
resultado compensa? Duvido muito. Portanto, o escritor brasileiro não
existe, se existir deve estar escondido atrás de uma mesa num escritório
qualquer, ou talvez seja um vendedor de loja, ou motoboy, gari ou um assalariado fodido. Viva o nosso
herói desconhecido! RSL - O que lhe diferencia
dos outros escritores de romance policial? IL - Eu poderia enfeitar, dizer
que é a linguagem, mas a resposta é facílima: o
sucesso. RSL - Romance policial é um
gênero menor?
RSL - Qual a influência que
a Internet tem na sua literatura? IL - Considero hoje a Internet
como sendo a GRANDE
ENCICLOPÉDIA, a GRANDE BIBLIOTECA. Consulto-a com freqüência:
história, mitologia, religião, psicanálise, literatura, música, tudo,
tudo, nunca deixei de encontrar o que procurava ou o que eu precisava
saber, ler, entender. O meu conhecimento de línguas facilita-me muito,
tenho certeza absoluta de que devo muito a Internet, ela me é
imprescindível. RSL - Prefere prosa ou
poesia? IL - Já externei minha opinião,
de certo modo, sobre isso. Prefiro escrever prosa, sem dúvida alguma, mas
gosto da leitura da poesia e posso acrescentar que uma das minhas paixões
é a leitura da peça teatral, talvez seja o que mais aprecio. RSL - Qual o mote que o
acompanha pela vida? Fale sobre. IL - A expressão da verdade, a
falta de receio de dizer o que penso. Não abro mão disso. É evidente que o
perigo reside em ultrapassar a linha da educação, do bom senso, e até
mesmo da humildade, é preciso pensar bem antes de falar, ninguém é dono da
verdade. Mas essa minha maneira de ser não me assusta, a ética me comanda.
RSL - Por que o crime lhe
fascina tanto? IL - Por que o crime representa o que há de pior no ser humano. O homem é o único ser vivo que mata seu semelhante sem motivo aceitável (nos meus romances o castigo merecido se faz presente sempre). Essa faceta do homem é assustadora. Eu já passei por situação em que eu tinha certeza absoluta de que seria capaz de tirar a vida do meu semelhante. O homem é um bicho incompreensível. Mata na guerra e recebe medalha, mata por fome e é condenado à morte. A condição humana é uma maldição.
[Publicada originalmente na Germina, em
abril/2007] Iosif Landau (Bucareste/Romênia, 30/04/1924 – Rio de Janeiro/RJ, 14/08/2009). Veio para o Brasil em 1940. Formou-se em engenharia, casou-se com Lia, em 1950, e teve quatro filhos — Luiz, Sérgio, Roberto e Elena. Aposentou-se e começou a escrever aos 70 anos de idade. Publicou onze livros, entre eles, Comissário Alfredo (Rio de Janeiro: Editora Record, 1995); Os Anjos Também Morrem (Rio de Janeiro, Editora Altos da Glória, 1997); Eles, Eu, Outros (Rio de Janeiro: Papel & Virtual Editora, 1999); Confissões (Rio de Janeiro, Papel & Virtual Editora, 2001); Memória Tumultuada (Rio de Janeiro: Papel & Virtual Editora, 2002); Abelardo e Outros Contos (Rio de Janeiro: Papel & Virtual Editora, 2004); O Diabo Vestia Seda (Rio de Janeiro: Publit Editora, 2006). Participou da antologia Crime Feito em Casa — Contos Policiais Brasileiros, organizada por Flávio Moreira da Costa (Rio de Janeiro: Editora Record, 2005). Sob o pseudônimo de Dominique Lotte, foi uma das Escritoras Suicidas. [www.iosiflandau.com] |
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