rodrigo de Souza Leão fala sobre o seu novo livro Juliana Krapp, JB
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RIO
- O narrador de Todos os cachorros
são azuis (7Letras, 80 páginas, R$ 25) é um esquizofrênico. Por isso,
a trama do segundo livro de Rodrigo de Souza Leão — o primeiro em prosa —
se passa, em sua maior parte, num hospício. Ou dentro das alucinações do
protagonista-narrador, que tem amigos imaginários como Rimbaud e
Baudelaire. Que acredita que engoliu um chip, ou um grilo. E que, fazendo
jus ao estilo do jovem autor, encadeia uma narrativa exuberante, repleta
de um lirismo — por que não dizer? — alucinado. É,
o próprio Souza Leão, um esquizofrênico, que se baseou em sua experiência
pessoal para compor o livro. Não por coincidência, ele começou a
escrevê-lo depois de sua segunda internação, em 2001 (a primeira fora em
1989), "com o quarto escurecido por doses de Litrisam". Ao aproximar sua
prosa da esquizofrenia, o autor também a aproxima da poesia, como conta na
entrevista abaixo. Como
e quando começou a escrever o Todos
os cachorros são azuis? Prefiro
responder primeiro quando começou e depois responder
como. Comecei
a escrever Todos os cachorros são
azuis depois da minha segunda internação, que foi em 2001. Não me
lembro exatamente o mês. Eu estava com 120 quilos de peso e muito gordo
para o meu metro e setenta e um. Faço questão desse um, rs. Suava muito
porque fazia um calor infernal. Agora me lembro. Era verão. Voltava de
mais uma estadia no inferno. Internações são muito traumáticas. Às vezes
não é necessário internar, ainda mais como eu fui, da maneira como foi.
Estava em casa e minha família muito atormentada com as coisas que estava
fazendo e acontecendo na minha vida, resolveu sair de casa e me deixar só
com minha avó que era viva e estava com noventa anos e numa cama. Eu
avisei a eles que se saíssem não iam mais entrar. Duas horas depois eles
tocaram na campainha. Eu havia passado o trinco na porta. Falei que
ninguém iria entrar. Mas era uma mistura de brincadeira com uma tentativa
de dar um susto neles. De eles não me abandonarem. Mas eles chamaram a
polícia. A polícia arrombou a minha casa. Eu havia acabado de passar um
interurbano para Minas e estava ao telefone com a Silvana Guimarães. Não
ouvi o barulho. Pelo menos a PM teve o cuidado de tirar as armas antes de
invadir meu lar. Eram três policiais militares e eles tentaram durante uma
hora me convencer a ir para o Pinel. Não tocavam em mim. Mas deixavam
claro que se fosse necessário, usariam de força. Vendo que demoravam
muito, um oficial mais graduado resolveu subir. Ele estava embaixo, na
viatura. A princípio expus meus argumentos. Falei que se tratava de uma
brincadeira. Mas não deu e resolvi ir sem necessidade de ser usada a
conhecida força policial. Saí do edifício escoltado por quatro policiais.
Me botaram numa viatura e me levaram para o Pinel. Meu irmão foi junto
comigo e meus pais foram no carro da família. Cheguei ao Pinel e minha
família optou por me internar numa clínica particular. O hospício que
havia ficado internado pela primeira vez em 1989. Fiquei
internado por vinte dias. Quando voltei a minha casa, dois dias depois, no
meu quarto escurecido por doses de Litrisam, comecei a escrever Todos os
cachorros... Agora
o como? Eu já havia escrito Carbono
pautado — as memórias de um auxiliar de escritório. Uma prosa mais
convencional. (Século XIX). O Carbono... (ainda bem) não teve
boa acolhida em nenhuma editora. Era um texto de duzentas páginas.
Quando
começo a escrever uma narrativa não sei quantas páginas vai ter. Mas
queria escrever uma coisa diferente e com menos quantidade de páginas.
Escrevi uma página por dia e ao final de quarenta dias tinha uma novela em
estágio embrionário. Necessitava de revisão e de uma burilagem. Teria que
mexer mais no texto final. Mandei para Leonardo Gandolfi e Franklin Alves
Dassie, meus amigos. Eles acharam o livro ótimo. O Leonardo deu uns
pitacos que me ajudaram muito. Fiquei com aquilo guardado. Depois de um
tempo mandei fazer uma revisão e enviei para algumas editoras. Fui
rejeitado por todas, menos a 7Letras. O Jorge Viveiros de Castro gostou e
queria publicar, mas eu não tinha grana alguma para ajudar. Veio o prêmio
da Petrobras e ganhei a bolsa. Reescrevi o texto todo e acrescentei mais
um capítulo. Aleluia! Apesar
de ser um livro autobiográfico, Todos os cachorros são azuis não é
narrado de forma linear. Como foi o seu processo de
escritura? O
meu processo foi o de tentar aproximar a prosa à esquizofrenia. Para isto,
resolvi achegar a prosa à poesia. A linguagem natural de um louco é,
digamos, um pouco poética. Quando um poeta diz, por exemplo, "guardei o
sol em sete partes", usa uma linguagem específica. O sol não tem partes e
nem pode ser guardado. Só num poema isto é possível. Por isso, o livro
pode ser poético. Foi isso que busquei. Fiquei possuído por esse espírito
e acho que não errei de todo. Queria
também ser ágil e um pouco diferente sem ser chato. Já existem muitos
escritores herméticos e chatos, não queria ser mais um em que o hermetismo
fosse o principal da narrativa. Mas nunca facilitei o texto. Usei também
muito a repetição. Repetia que tinha engolido um chip, que engolira um
grilo e outras coisas mais. Só não havia engolido espadas. Aliás, nem
gosto muito de ver mágica e magia. Então
a esquizofrenia influencia o seu jeito de
escrever? Tomo remédios coloridos para poder me controlar e viver da melhor forma possível. Se devo algo, e devo muito, devo a escritores como Rubem Fonseca, João Gilberto Noll, Wilson Bueno, entre outros. Eles é que me fizeram escrever. Acho que estou indo, mas muito longe deles. Aliás, não dá nem para chegar perto de gente tão boa como esse pessoal aí de cima. De modo que a esquizofrenia em si não me ajuda; muito pelo contrário, me atrapalha. Ser esquizofrênico é muito difícil. Depois que li num compêndio psiquiátrico que a esquizofrenia é uma doença altamente incapacitante fiquei preocupado. E se eu piorar? Como manter um controle para escrever? Existe o mito esquizofrenia/inteligência. É um problema. Imagina o que o matemático Nash teria feito se não tivesse alucinações persecutórias e ouvisse vozes e visto alucinações. Sua contribuição teria sido bem maior. Van Gogh não teria arrancado a orelha e talvez não tivesse feito sua obra com tamanha criatividade. Mas teria vivido melhor. Ser esquizofrênico é muito ruim e não faz de ninguém um ser melhor. Imagino
que algumas das alucinações que aparecem em Todos os cachorros... você tenha
experimentado, de fato. Mas nem tudo é memória. Como surgem essas idéias
alucinatórias, esse jeito no qual a própria linguagem puxa o
insólito? A
esquizofrenia tem diversos níveis. Cada louco é um louco. Na minha
experiência não tive muitas alucinações auditivas e visuais. Mas vivo com
sensações persecutórias. Acho que estão me perseguindo e que vou ser
assassinado. Convenhamos que isso não traz tranqüilidade. O que tenho é
atualmente chamado pelos psiquiatras de distúrbio delirante. Para o livro
coloquei um protagonista que via e ouvia alucinações. Aproveitei
experiências do meu irmão Bruno. Ele é bipolar e já teve uma psicose
séria. Só voltou a si graças ao eletro-choque. Ficou abobado, mas agora
está normal. Misturei também as duas internações que existiram na minha
vida. A primeira foi muito traumática. Fui internado com camisa-de-força.
Me botaram num cubículo. Me deram um sossega-leão. Foi horrível. Um
verdadeiro pesadelo. O lugar da clínica onde fiquei era tão ruim que o
chamavam de Carandiru. Mas não culpo ninguém da minha família por isso.
Não havia outra opção. Amo muito minha família. Você
está investindo mais pesado na prosa? A
poesia secou em mim. Eu já escrevi muitos poemas. A maioria da minha
produção é disso. Mas a prosa vem me dando mais frutos. Também não consigo
escrever algo um pouco melhor no formato poema faz muito tempo. Sinto que
não tenho nada mais a dizer. Apesar de a poesia me tocar, eu sinto que ela
está me abandonando. Fugindo. Escondendo-se de mim. Mas confesso que tenho
mais facilidade de escrever poemas, um tanto ruins, é verdade. A prosa é
uma coisa difícil e não me faz mais feliz. Tenho dificuldade realmente. A
prosa requer uma paciência que tenho aprendido. Tenho
uma teoria boba na poesia: a de que a forma tem que ser apolínea e o
conteúdo dionisíaco. Mas isso só vale para um estudo superficial, porque
forma é conteúdo. Digamos que o apolíneo e o dionisíaco me abandonaram.
Fiquei muito só na poesia. Percebo também que alguns de meus poemas estão
meio que datados. Procuro sempre novas formas de escrever algo. Sou
impaciente. Mas percebo que era melhor poeta quando tinha mais caoticidade
nas minhas coisas. Hoje escrevo de forma mais simples. Nunca perfumei a
flor, contudo fui simplificando demais meu texto. Também tem algo que
ainda não disse. Minha prosa é meio poema. Uma elipse aqui, uma metáfora
ali, e assim seguimos. Então
podemos dizer que, no seu caso, é impossível separar poesia e prosa?
É
possível, mas não no caso de Todos
os cachorros... O bom deste livro é ser uma prosa sem muito limite,
mais parecida com determinado tipo de poesia. Como
comecei escrevendo poemas e me dediquei a isto desde os 18 anos, penso que
é uma coisa que acontece naturalmente. Pelo menos foi assim com Todos os cachorros... Mas tenho
livros menos próximos da poesia. Inclusive o que estou escrevendo.
Creio que, como trabalho nesta nova narrativa com outros temas que me pedem outra escrita, este texto novo vai seguindo na direção que acho mais correta. Uma coisa mais contida. Por enquanto estou com um material de um romance de 300 páginas. Chama-se Tripolar. Serão novelas que, entrelaçadas, podem dar em um romance. Preciso trabalhar ainda muito neste novance. É como chamo esse misto de novela com romance. Mas o importante é que é uma narrativa que não entra em uma categoria específica. É um híbrido, melhor, uma mixagem como se eu fosse um DJ. Você
já lançou e-books, tem um blog, colabora para sites, tem uma vasta
produção online. Como a internet incide na sua
criação? A
internet foi mais importante na minha formação do que na minha criação.
Comecei publicando um e-zine. Era um fanzine distribuído por e-mail.
Publicava poemas, textos e entrevistas. O nome era Balacobaco. Circulou por quase
seis anos. Pude entrevistar diversos escritores. De alguns virei amigo.
Eles me mandavam seus livros. Assim entrei em contato com boa parte da
produção de literatura da nova geração. Depois veio o site Caox, do qual fazia o design. Fui
um dos fundadores da revista Agulha. Colaborava como webmaster e como
repórter. Mas só fiquei um número. Não gostava muito da função de web
designer. Hoje em dia atuo em três frentes. Atualizo o meu blog e faço
entrevistas e resenhas para a Germina [http://www.germinaliteratura.com.br] e ainda
edito junto com o poeta Claudio Daniel a revista Zunái
[http://www.revistazunai.com]. Não
considero que exista uma escrita específica na internet. Fica claro que o
que há é um vocabulário diferente, mas ainda não chegou a influenciar
tanto assim os escritores. Muita abreviação e adaptação. Creio que caberá
à moçada da novíssima geração escrever o internetês em livro. Como tenho
43 anos, não fui educado com essa linguagem. O fato: existe uma nova forma
de escrever no mundo, mas desconheço ainda algum escritor que trabalhe
ostensivamente neste sentido. "O
louco é muito sedutor", diz um trecho do seu livro. É
verdade? É
uma verdade relativa. Temos que relativizar e ver que tipo de louco é
sedutor. O louco que seduz é aquele que não tem conexão muito forte com a
realidade e vive dentro de um estereótipo: o de usar roupas folclóricas e
ter todo um aparato que o faz ser reconhecido como doente em qualquer
lugar. E
para a literatura? A loucura é sedutora? Esta
pergunta está ligada à de cima. A loucura que interessa é a esteorotipada.
Existe muito esquizofrênico e muito bipolar que tenta e às vezes consegue
levar uma vida normal e até ter uma visão crítica da própria da doença. É
o meu caso. Mas o doente mental que interessa mesmo é o folclórico. Como
me visto como uma pessoa normal e tenho uma articulação discursiva boa,
não devo ser muito interessante para isso. Falemos
sobre a produção dos loucos. No campo cultural, quais os loucos que mais
lhe instigaram?
Van Gogh foi quem mais me instigou. A relação que tinha com o irmão é muito parecida com a que tenho com meu irmão Bruno. Ele é um puta companheiro. Nós nos ajudamos mutuamente. Outro que era diferente é Marcel Proust. Talvez não tivesse uma patologia forte, mas não tinha um grau de sanidade muito alto. Sua contribuição à literatura foi fundamental. Outro borderline era o Kafka. Chegou a ponto de pedir ao seu melhor amigo que queimasse quase tudo que havia escrito. Ainda bem que isso não aconteceu. Artaud vivia uma dupla dificuldade: homossexual e louco. Há muito o que falar nessa seara, mas, sinceramente, não me sinto muito capaz de falar bem disso, acho.
03
/ dezembro / 2008
Juliana Krapp nasceu em 1980, no Rio de Janeiro, onde vive. É jornalista e
mestranda em Comunicação Social da UERJ. Participa do grupo CAC
(Comunicação, Arte e Cidade). Inédita em livro, tem alguns poemas
publicados em revistas como Inimigo Rumor e Poesia
Sempre. |
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